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Borges de Medeiros: do beco ao bulevar

As origens da idéia de alargar a rua General Paranhos, seguidamente caracterizada na literatura como uma via estreita e imunda, remontam aos primórdios das administrações republicanas de Porto alegre. Os melhoramentos urbanos eram caros aos políticos do Partido Republicano Riograndense, de orientação positivista, e que passaram a gerir a cidade a partir da proclamação da República com vistas a começar a apagar o seu passado colonial e imperial. A ênfase na técnica, especialmente nos novos conhecimentos científicos que procuravam tornar o ambiente da cidade menos propenso à propagação de doenças e eliminar construções sem ventilação e iluminação adequadas, passou a orientar e justificar a transformações do espaço que, no entanto, só foram implementadas nas primeiras décadas do século XX.

A rua General Paranhos, pelas características de sua ocupação humilde e por ser palco de sociabilidades populares e estigmatizadas, como o jogo, a prostituição, as práticas religiosas afro-brasileiras, logo entrou na mira das autoridades. Por ser estreita e apresentar ladeiras íngremes, era uma ligação pouco eficiente entre o porto, na margem norte de Porto Alegre, e a enseada junto à foz do arroio Jacareí, na margem sul da cidade.

Planta topográfica de Porto Alegre, início do século XX. Em destaque, a rua General Paranhos situada sobre o espigão rochoso representado pelas curvas de nível. Arquivo Histórico Municipal de Porto Alegre Moysés Vellinho.
Planta topográfica de Porto Alegre, início do século XX. Em destaque, a rua General Paranhos situada sobre o espigão rochoso representado pelas curvas de nível. Arquivo Histórico Municipal de Porto Alegre Moysés Vellinho.

Como se verá, tanto a estigmatização social quanto a necessidade de abertura de uma ligação viária entre as ruas margens da península serão motivadoras de uma transformação radical, mas que começa com um modesto projeto de alargamento e embelezamento, ainda no século XIX.

Segundo Cláudia Damásio,

“A idéia de fazer obras de urbanização e melhoramentos na General Paranhos já se fazia presente bem antes de Maciel fazer sua proposta. Conforme o relatório de Otávio Rocha de 1925, em 1894, o então intendente Alfredo Azevedo, fez uma concessão, através do Ato nº 31 de 20 de março daquele ano, aos senhores Samorim Gustavo de Andrade e José Bernardino dos Santos, do direito de fazerem as desapropriações necessárias para levarem a efeito o alargamento e prolongamento da rua General Paranhos e sua reedificação. Já na edição do jornal A Federação de 10 de março de 1925, relata-se que estes mesmos senhores solicitaram ao Governador do Estado, no ano de 1891, a concessão para o alargamento e prolongamento do ‘Beco do Poço’, que era taxado, muito justamente, pelos requerentes, de íngreme, estreito e imundo, em pleno coração da cidade, a dois passos do Palácio do Governo’. Surpreende o fato de que, já naquela época, ainda no século XIX, a imagem de uma cidade higiênica, estruturalmente preparada para a circulação de veículos, pessoas e mercadorias e esteticamente bela, justificava tal solicitação […].”[1]

Se o projeto dos dois cidadãos não foi em frente à época, nas primeiras décadas do século XX o Plano de Melhoramentos de Porto Alegre, elaborado em 1914 pelo engenheiro-arquiteto João Moreira Maciel, colocava o alargamento da rua General Paranhos entre as suas propostas de remodelação urbana. Contudo, a gestão de José Montaury na prefeitura era contida, evitando grandes dispêndios em obras. Assim, as obras de alargamento tiveram modesto início em 1922, como se verifica no relatório desse prefeito ao Conselho Municipal publicado no jornal A Federação:

[…] Tendo em vista o projecto organizado para o alargamento de algumas ruas da área urbana, a Intendencia[2] começou a sua execução pelas ruas Paysandu[3] e General Paranhos, entre as ruas Andrade Neves e Duque de Caxias. […] Diversos são os predios adquiridos para o alargamento da rua General Paranhos, faltando alguns cujos proprietarios não estão de acordo com os preços oferecidos e outros por se acharem ausentes, Entretanto, espero que, dentro em breve estejam removidas essas dificuldades.”[4]

Detalhe do levantamento cadastral da rua General Paranhos com previsão da avenida Borges de Medeiros, ca. 1927. Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho.
Detalhe do levantamento cadastral da rua General Paranhos com previsão da avenida Borges de Medeiros, ca. 1927. Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho.

Porém, somente na gestão de Otávio Rocha, de 1924 a 1928, é que as circunstâncias políticas pressionaram pela implementação do Plano Maciel, e o projeto de alargamento da rua General Paranhos foi revisado, aumentando-se o seu escopo significativamente. Essa retomada e ampliação do projeto tem um peso político importante, pois, finda a revolução de 1923, o PRR havia acordado substituir José Montaury por Otávio Rocha na prefeitura. Sobretudo o traçado ainda de origem colonial da cidade, com suas ruas e becos estreitos e acidentados, dificultava a circulação de pessoas e mercadorias, especialmente num momento em que se implantavam novos meios de transporte. Esse estado de coisas gerava muita insatisfação para as classes comerciantes e industriais da capital, que faziam pressão política importante para o PRR. Assim, modificar radicalmente a rua General Paranhos era parte de um projeto ambicioso de modernizar a cidade, transformando sua paisagem de origem colonial portuguesa num cenário inspirado nos grandes bulevares de Paris.

Retrato do intendente Otávio Rocha na capa da revista A Máscara, ano VII, nº 4. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
Retrato do intendente Otávio Rocha na capa da revista A Máscara, ano VII, nº 4. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Nesse esforço de reforma urbana, Otávio Rocha julgou que o projeto de Maciel apenas como obra de embelezamento e higiene, mas não viária: a largura prevista de apenas 13 metros e a extensão só até a Praça 15 eram insuficientes para resolver os problemas que circulação. O intendente resolve reduzir as declividades da via, projetando uma escavação na rocha, e um viaduto “[…] de cimento armado, com arco abatido, por onde se fará a passagem da rua Duque de Caxias”[5].

Projeto do "Viaduto da Duque de Caxias" reproduzido na revista A Máscara de 6/2/1925. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
Projeto do “Viaduto da rua Duque de Caxias” reproduzido na revista A Máscara de 6/2/1925. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Começa-se a ver, então, que a obra de alargamento da rua General Paranhos vai tomando proporções muito maiores que aquilo inicialmente projetado. Rocha aproveita para aumentar o alargamento da rua para 21 metros, prevendo sua extensão até o porto, com um abrigo central arborizado e iluminado, ladeado por linhas de bondes. Ou seja, de um mero alargamento, passa-se a tratar de uma obra de integração da cidade:

“O intendente concluía que se tratava de uma obra de viação de grande relevo, porque encurtaria o trajeto para todas as linhas de comunicação viária dos arrabaldes Menino Deus, Glória, Teresópolis e Partenon.”[6]

A partir daí, a prefeitura corre para contratar empréstimos no exterior para financiar essa vultuosa obra, que é cuja realização é aguardada com muita expectativa pela população. Porém, o seu andamento será lento:

Em 1925, já com as desapropriações e demolições de imóveis em curso, abre-se o concurso para o projeto do viaduto.

Em 1926, seguem as obras do desaterro da via.

"Outra vista das excavações feitas para a avenida Borges de Medeiros". Revista A Máscara, Ed. 001, 1927, p. 99.
“Outra vista das excavações feitas para a avenida Borges de Medeiros”. Revista A Máscara, Ed. 001, 1927, p. 99.
"Muro do pateo do Snr. J. B. Barreto Leite (predio nr. 223 da rua Duque de Caxias) vendo-se as grandes excavações, já bastante adiantadas, para a grande avenida Borges de Medeiros". Revista A Máscara, Ed. 001, 1927, p. 100.
“Muro do pateo do Snr. J. B. Barreto Leite (predio nr. 223 da rua Duque de Caxias) vendo-se as grandes excavações, já bastante adiantadas, para a grande avenida Borges de Medeiros”. Revista A Máscara, Ed. 001, 1927, p. 100.

 

Em 1927, o Correio do Povo noticia obras paradas em diversos pontos da cidade, especialmente na futura avenida Borges de Medeiros. A alemã Dyckerhoff & Widmann é contratada para executar o projeto do viaduto, escorar os prédios vizinhos e escavar o terreno, o que exigiu o uso de explosivos.

Obras na Borges de Medeiros. Correio do Povo, 07/07/1927. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
Obras na Borges de Medeiros. Correio do Povo, 07/07/1927. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Em 1929, o engenheiro Manoel Itaqui, autor do projeto vencedor, é contratado para fiscalizar as obras do viaduto, que só se iniciam em novembro daquele ano.

Em 1931 é feito o teste de resistência do viaduto, que é aprovado, ficando ele aberto ao tráfego de bondes.

Em 1932 o viaduto é inaugurado oficialmente, mas as obras seguem com morosidade. A imprensa intensifica a pressão para que os trabalhos se acelerem, e que a avenida Borges de Medeiros seja aberta efetivamente até o porto. O ritmo lento das obras trazia muitos contratempos à população, pois muitas ruas importantes do seu entorno ficavam com a circulação limitada ou mesmo bloqueada.

Obras da avenida Borges de Medeiros na década de 1930. Foto 4609f da Fototeca Sioma Breitman. Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.
Obras da avenida Borges de Medeiros na década de 1930. Foto 4609f da Fototeca Sioma Breitman. Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.

Em 1933, a falta de recursos faz com que as obras sejam retomadas com um projeto diferente para a conclusão da avenida: a “pêra”, ou seja, um retorno das linhas de bondes no cruzamento da avenida com a rua Andrade Neves, não chegando nem à Praça 15 e muito menos ao porto. Diante da indignação popular e da imprensa, a prefeitura recua, e é salva por uma generosa doação do Banco Pfeiffer, que faz com que o trajeto original da avenida seja retomado.

Em 1935, ano do centenário da revolução farroupilha, a avenida é oficialmente inaugurada. Contudo, apenas da rua Coronel Genuíno à rua dos Andradas.

Avenida Borges de Medeiros provavelmente na década de 1930, em direção à rua Coronel Genuíno. Foto 027f da Fototeca Sioma Breitman. Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.
Avenida Borges de Medeiros provavelmente na década de 1930, em direção à rua Coronel Genuíno. Foto 027f da Fototeca Sioma Breitman. Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.

Em 1942 a avenida Borges de Medeiros é inteiramente concluída na administração do prefeito Loureiro da Silva.

 

Referências:

[1] DAMÁSIO, Cláudia Pilla. Porto Alegre na década de 30: uma cidade idealizada, uma cidade real. Dissertação de Mestrado, PROPUR-UFRGS. Porto Alegre, 169 p., 1996. P. 106-107.

[2] O mesmo que prefeitura.

[3] Atualmente, a rua Caldas Júnior.

[4] A Federação, 16/11/1922, p. 10 Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[5] SOUZA, Célia Ferraz de. Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre: o plano que orientou a modernização da cidade. Porto Alegre: Armazém digital, 2010. Pp. 206-214.

[6] SOUZA, Célia Ferraz de. Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre: o plano que orientou a modernização da cidade. Porto Alegre: Armazém digital, 2010. P. 209.

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