Funcionário do Club Excelsior no interior do escritório da empresa. Revista "A Máscara", Número Comemorativo do Centenário da Independência, 1922. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

O Natal de “Joãosinho”

É final de dezembro. Está quente, muito quente, mesmo há mais de cem anos, quando ainda não se suspeitava que o escapamento dos motores a explosão dos carros que faziam a delícia dos entusiastas da cidade moderna elevaria perigosamente as temperaturas médias de toda a Terra. Mesmo lá, há mais de cem anos, era véspera de Natal e o colunista da revista A Máscara tirava sabe-se lá de onde a inspiração para escrever, oprimido pelo calor de seu cubículo escaldante.

Lendo a sua crônica intitulada “Natal”, é possível sentir que a mente de “Joãsinho” rodopiava, aturdida pelo calor, e termina por tecer interessantes reflexões sobre a mudança da moda feminina, e a toilette dos modernos cavalheiros de seu tempo. De lá pra cá, muito mais mudou, mas o que não mudou é a exaustão de final de ano dos que, na véspera de Natal, tem que trabalhar.

Natal[1]

Encantadora creatura – Só este inadiavel compromisso que tenho com os directores desta revista me obrigaria, neste momento de canicula, a um inutil esforço creador deante da exigencia terrivel de algumas tiras de papel lamentavelmente em branco. Imagina, querida amiga, o meu tormento pavoroso. Faz lá fória um calor de todos os demonios juntos e eu estou mettido dentro de um cubiculo que excede todas as determinações da cubagem do ar. Entre a preguiça, que me prende a uma poltrona de vime e o esforço de abrir as janellas paro [sic] facilitar a entrada do ar abafadiço da tarde estival, em absoluto não hesito: de par em par escancaro as janellas. Qual! Se ainda me fosse possivel abria as do espirito, para que a inspiração me assistisse nesta angustia!… Emfim, resigno-me e vá de garatujar, penna em punho, bonecos inexpressivos que tento se assemelhem á graça incomparavel do seu porte, á seducção magnifica dos seus olhos, ao encanto intraduzivel de toda a sua magnifica compleição de… de que? Nem a synonimia, tão fecunda em outras horas, vem auxiliar-me na actualidade dolorosa que atravesso como algum viajeiro dos circulos malditos do inferno. Agora um borrão mancha a alvura de uma das folhas de papel collocadas em cima do bureau onde, exhausto, desejaria adormecer um grande somno e dormir, sonhar… No silencio profundo do gabinete da redacção zumbe uma mosca. Olho aborrecido, o tecto e as paredes. Há na minha frente uma gravura, extrahida de uma publicação extrangeira. Esta nada me póde suggerir: refere-se ao carnaval, um Pierrot vulgar e duyas colombinas muito banaes; demais a mais o carnaval está ainda longe, de modo que poderia parecer indecente recurso apellar para motivo tão distante. Atraz, vejo numa simples cartolina, um desenho. É explendida, na concepção e no trabalho artistico, mas… impossivel como suggestão ao meu cerebro cançado e estafado, no desemparo de uma cultura solidade que agora de muito me serviria. Occulta quasi a um canto da sala, um calendario: sexta-feira, 24 de dezembro de 1920.

Surpreendo-me; com que então, minha presada amiga, estamos em vespera de natal e eu na ignorancia completa desse acontecimento tão evocativo, adoravel, suavissimo de encanto!… O natal das commemorações christãs!… E enquanto, por alguns instantes se afastam os tenebrosos pensamentos de há pouco, fico-me para aqui, recordando milhão e meio de sentimentalidades, numa revoada do passado (se passado se denomina o periodo retrospectivo de dois anos) e immerso na tristeza oriunda da certeza que a elle não voltarei jamais. Sim, minha adoravel amiga, envelheci. Se me visse, induvitavelmente, não me reconhecia, tão mudado estou. Ainda as rugas não vascillam na dennune[c]ia de minha idade falsa, mas os meus olhos j[a não tem a mesma vida anterior. São uns olhos de fauno envelhecido. Pobre de mim! E tanto mais entristeço, sabendo que a senhora rejuveneceu naquelles dois annos. Affirma-o a dimensão minima do seu vestido, pouco aquem do joelho, quando eu a vi, trajada com uma saia que rolava pelos sapatos. Não o negue, mlle[2]. Que mal haveria nisso? Sim, eu a vi, de longo vestido, muito recatada de gestos, em attitude continua de melindres feridos, arisca e interessantes como as decantadas virgens dos romancetes de capa e espada. Naquelle tempo, mlle. muito discretamente punha os seus sapatinhos á janelle, em a noite de vespera de Natal, aguardando a passagem de Pápá Noel. Hoje… hoje, mlle. não pôe mais ingenuamente os sapatinhos junto ao fogão ou em outra qualquer parte da casa. Atira-os, aborrecidamente para um canto da alcova e dorme tranquilla porque o Pápá Noel moderno, não necessita de andar pela calada da noite telhados afóra, arriscado a levar um balaço, tão communs são os assassinatos nos dias correntes. No baile, certamente elle já prometteu o presente, no intervalo de um foxtrott, one-step, etc.

O seu ‘São Nicolau’ não usa a face coberta de longos pellos: tem-n’a escanhoada correctamente e suavisada a sua maciez com cold-cream, pó de arroz e outros ingredientes perfumados. Desse modo, é perfeitamente inutil exigir-lhe o esforço immenso de subir a um telhado, trepar pela claraboia e sujar-se de fuligem e pò. Além disso, mlle. não acredita nessas coisas, e mais, em nada.

Satisfeito, louvo aos céus porque assim fico dispensado de escrever sobre um Natal cheio de calor como este. Perdoe-me a sensaboria e a idiotice dos periodos acima.

Joãosinho”

Referências:

[1] A Máscara, 1920, Ed00029-7, pp. 19-20. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[2] Abreviatura de mademoiselle, francês para “senhorita”.

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