Paisagem da Colônia Africana na história em quadrinhos Beco do Rosário, 2020. Bico de pena e aquarela sobre papel.

A Colônia Africana

Há cerca de cem anos, o território negro urbano que era conhecido como Colônia Africana começava a “sumir do mapa” de Porto Alegre. De fato, se perguntarmos para alguém que hoje transita pelas ruas Cabral, Francisco Ferrer, Miguel Tostes ou até mesmo Lucas de Oliveira se sabe que está num histórico território negro urbano da cidade, é bem possível que nos olhasse de volta com espanto. Afinal, salvo poucos sinais ainda presentes dessa história, como os nomes de ruas[1], a paróquia da Nossa Senhora da Piedade[2], e a bica da rua Carlos Trein Filho, a memória das origens negras dessa grande área que se estende predominantemente ao norte do Caminho do Meio[3] e a leste do centro histórico foi sendo apagada.

Paisagem da Colônia Africana na história em quadrinhos Beco do Rosário, 2020. Bico de pena e aquarela sobre papel.
Paisagem da Colônia Africana na história em quadrinhos Beco do Rosário, (Ed. Veneta, 2020). Em primeiro plano, a rua Esperança (atual Miguel Tostes). Bico de pena e aquarela sobre papel.

A Colônia Africana em seus princípios foi um território distante do centro, e com pouca ou nenhuma urbanização. Eram terras desvalorizadas, e que foram sendo ocupadas por ex-escravizados em torno da abolição da escravatura. Com a expansão da área urbana, seus moradores tradicionais foram sendo cada vez mais empurrados para longe, e a Colônia foi sendo rebatizada com nomes de bairro que em nada lembram suas origens.

Ainda assim, se pararmos para ouvir as histórias dos filhos de seus antigos moradores, os memorialistas de Porto Alegre ou lermos um jornal antigo, a Colônia Africana nunca deixou de estar lá onde estivesse a população negra urbana com suas práticas e vivências, caracterizando aquilo que a geógrafa Daniele Vieira define como um território negro:

[…] território negro será aqui concebido enquanto espaço fisico e simbólico, configurado a partir da funcionalidade (habitação, trabalho, lazer) e/ou da prática cultural (batuque, carnaval, religiosidade) exercida por mulheres e homens negros, cuja significação é construída a partir da presença negra e/ou das atividades desenvolvidas por estes[4].

Naturalmente, Porto Alegre não teve na Colônia Africana o seu único território negro durante a sua formação. A segregação espacial da população negra urbana se manifestou em diversos momentos, e em diversos espaços da cidade, sendo que até no coração do atual centro histórico esses territórios existiram na forma de ruas e becos. De um modo geral, essa segregação é até hoje uma marca das cidades brasileiras devido às origens escravistas do país, que legou à sociedade um caráter excludente e de repressão brutal à cultura, à religiosidade e às vidas negras.

Foto de mulher desconhecida. Virgílio Calegari, início do séc. XX. Fototeca Sioma Breitman, Museu Joaquim José Felizardo de Porto Alegre.
Foto de mulher desconhecida. Virgílio Calegari, início do séc. XX. Fototeca Sioma Breitman, Museu Joaquim José Felizardo de Porto Alegre.

Na virada do século XIX para o século XX, a extinção do regime escravista reclamou outras formas de controle social, invocando doutrinas racistas pseudo-científicas para manter a hierarquização social tradicional e marginalizar a população negra. Além disso, também houve uma busca ativa de apagar a presença africana e afrodescendente da identidade nacional na forma das políticas de branqueamento, que promoveram o influxo de imigrantes europeus, em especial alemães e italianos, para o país desde o início do século XIX. Essa rápida passagem por todas essas questões, que são muito mais complexas e vastas do que o espaço deste texto, é necessária para entendermos como se constituíram os territórios negros de Porto Alegre, e como eles também foram “esquecidos”.

Nesse sentido, a Cidade Baixa, assim como a Colônia Africana, também tem suas origens na ocupação do território pela população negra de Porto Alegre. O famoso Areal da Baronesa, aliás, fica na Cidade Baixa, e todas essas áreas compartilharam características comuns de urbanização e de classe, como explica o historiador Marcus Vinícius Rosa:

Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, os negros estavam fortemente associados a dois bairros da cidade: Colônia Africana e Cidade Baixa […]. De um modo geral, estes locais ficaram conhecidos pela falta de melhorias urbanas, pelo oferecimento de moradias baratas e principalmente por concentrar os negros e os pobres em geral. Embora não tenham sido encontrados dados demográficos específicos sobre a cor da população naqueles espaços, a elevada densidade populacional negra ficou bastante evidente nas fontes [grifo da pesquisadora]; ao mesmo tempo, lá também havia indivíduos cuja cor da pele tinha outros matizes[5].

Planta de Porto Alegre de 1916, IHGRGS. A marcação em rosa indica a área da Cidade Baixa. Edição da pesquisadora.
Planta de Porto Alegre de 1916, IHGRGS. A marcação em rosa indica a área da Cidade Baixa. Edição da pesquisadora.

Assim, a pobreza foi uma característica fundamental desses espaços negros, tanto para a Cidade Baixa quanto para a Colônia Africana. Mas, afinal, onde se localizava essa última? Em linhas gerais, podemos pensar a área da Colônia Africana como sendo aquela delimitada, ao norte, pela avenida Independência e 24 de Outubro, e, ao sul, pelas avenidas Osvaldo Aranha e Protásio Alves.

A Colônia Africana em mapas:

Planta de Porto Alegre de 1916, IHGRGS. A marcação em amarelo indica a área da Colônia Africana, e a seta o seu sentido de deslocamento ao longo do século XX. Edição da pesquisadora.
Planta de Porto Alegre de 1916, IHGRGS. A marcação em amarelo indica a área da Colônia Africana, e a seta o seu sentido de deslocamento ao longo do século XX. A avenida destacada em rosa é a Independência, em verde, as avenidas Osvaldo Aranha e Protásio Alves. Edição da pesquisadora.
Foto de satélite de Porto Alegre, Google Maps. A marcação em amarelo indica a área da Colônia Africana, e a seta o seu sentido de deslocamento ao longo do século XX. Edição da pesquisadora.
Foto de satélite de Porto Alegre, Google Maps. A marcação em amarelo indica a área da Colônia Africana, e a seta o seu sentido de deslocamento ao longo do século XX. A avenida destacada em rosa é a Independência, em verde, as avenidas Osvaldo Aranha e Protásio Alves. Edição da pesquisadora.

É interessante notar que a Colônia Africana se desenvolveu justamente ao lado dos bairros Independência e Moinhos de Vento, com seus luxuosos palacetes e ocupação predominantemente rica, branca e imigrante. Contudo, parece ter havido um movimento em direção ao leste da cidade ao longo do século XX, à medida em que a urbanização e a gentrificação de partes dessa grande área, mais próximas ao centro, iam se consolidando e expulsando os moradores negros para cada vez mais longe. O historiador Eduardo Kersting, no entanto, trabalha com a hipótese desse território ter se originado nas terras da família Mariante[6] no final do século XIX:

[…] o que interessa aqui é o fato dos Mariante terem sido proprietários de terras e escravos no exato local em que logo se estabeleceria tal comunidade negra [a Colônia Africana]. Isso nos faz imaginar uma relação direta entre essa família escravocrata e a presença de negros nas suas antigas propriedades após a abolição. Embora se deva evitar fazer uma ligação desse tipo sem um maior respaldo documental, deve-se admitir que é uma hipótese bastante considerável a de colocar a origem dos habitantes negros da Colônia Africana nas antigas propriedades de escravocratas que compunham tal área[7].

Postal mostrando o atual Parque da Redenção no início do século XX. Acervo desconhecido.
Postal mostrando o atual Parque da Redenção e o Colégio Militar (Escola de Guerra) no início do século XX. Ambos são vizinhos à área antiga Colônia Africana. Acervo desconhecido.

Já a fotógrafa e historiadora Irene Santos traz o testemunho de Jayme Moreira, antigo morador da área, e que indica que a Colônia Africana ocupava uma área bem maior do que a tradicionalmente considerada pela historiografia:

‘A Colônia começava na Ramiro Barcellos e ia tomando conta de todas as travessas e ruas que hoje compõem o Bairro Rio Branco, pegava uma parte da Avenida Independência, seguia pela Rua Mostardeiros, chegava ao Bairro Moinhos de Vento e subia pela Lucas de Oliveira para atingir o Mont’Serrat. Mais para baixo, do outro lado, onde é hoje o Hospital de Clínicas, a Colônia se estendia até o Bairro Santana, abrangendo antes as ruas Santa Cecília e Leopoldo Bier’[8].

Porto Alegre em foto de satélite, Google Maps. Em azul, a mancha ocupada pela Colônia Africana segundo Jayme Moreira, com ocupação estendida para o sul. Edição da pesquisadora.
Porto Alegre em foto de satélite, Google Maps. Em azul, a mancha ocupada pela Colônia Africana segundo Jayme Moreira, com ocupação estendida para o sul. Edição da pesquisadora.

Moreira chega a considerar que Colônia Africana tenha suas origens ainda mais recuadas no tempo, mais exatamente em meados do século XIX:

Os negros que sobreviveram à Revolução Farroupilha, os lanceiros negros, não voltaram para os senhores, fugiram do cativeiro e, sempre juntos com mulheres e filhos, começaram a habitar as terras do Morro da Igreja da Nossa Senhora da Piedade. A Colônia Africana foi um reduto de liberdade, começo de uma nova vida marcada pelo jeito negro de viver[9].

Escravos libertos. Fotografia de Lunara, provavelmente início do séc. XX. Foto 455f da Fototeca Sioma Breitman. Museu Joaquim José Felizardo de Porto Alegre.
Escravos libertos. Fotografia de Lunara, provavelmente início do séc. XX. Foto 455f da Fototeca Sioma Breitman. Museu Joaquim José Felizardo de Porto Alegre.

Se não temos exatidão quanto à chegada dos primeiros ocupantes e ao exato local de formação da Colônia Africana, a sua estreita ligação à cultura negra no imaginário urbano entre as décadas finais do século XIX e a segunda metade do XX é inegável. Sérgio da Costa Franco afirma que “na imprensa local […] desde o princípio da década de noventa [1890], podem ser encontradas referências à ‘Colônia Africana’, e não raro desairosas”[10]. Essa estigmatização foi uma constante também ao longo das primeiras décadas do século XX, em que a Colônia Africana aparecia nos jornais como um espaço de pobreza, criminalidade e imoralidade. Neles, noticiava-se com sensacionalismo e riqueza de detalhes os distúrbios, as cenas de sangue e os conflitos ocorridos na celebérrima Colônia Africana. Criava-se assim uma imagem terrível do lugar, associando-o às bebedeiras, aos batuques e à criminalidade de um modo geral, o que se estendia aos seus moradores.

Postal de vista da Colônia Africana no início do século XX. Acervo desconhecido.
Postal de vista da Colônia Africana no início do século XX. Acervo desconhecido.
Colonia Africana amanhecer. Revista A Máscara Número Comemorativo do Centenário da Independência, Porto Alegre, 1922. Hemeroteca do MCSHJC.
Colonia Africana amanhecer. Revista A Máscara, Número Comemorativo do Centenário da Independência, Porto Alegre, 1922. Hemeroteca do MCSHJC.

Em termos de urbanização, a Colônia Africana também não recebia bom atendimento das autoridades. Por tratar-se de uma área ainda considerada distante do centro da cidade, ocupada por densas matas, e em grande parte, íngreme, o poder público não via valor nela que motivasse uma pronta instalação de redes de esgoto ou iluminação, e talvez mesmo até de coleta de lixo. Tanto é assim que a historiadora Sandra Pesavento afirma que, mesmo com a expansão da urbanização do entorno de Porto Alegre,

[…] territórios como a zona do Mont’Serrat, a Colônia Africana e o Areal da Baronesa, cuja origem estava associada às populações negras de Porto Alegre, […] oficialmente não têm nesta época o estatuto oficial de arraial pelos ‘notáveis’, que defendiam a cidade[11].

Por outro lado, o único serviço público atuante na área era a repressão policial.

“Aliada a necessidade de um controle total sobre os negros urbanos, decorrente da própria prática anterior da escravidão nas cidades e, posteriormente, da situação dos libertos dentro da nova ordem burguesa, os territórios negros receberam uma atenção redobrada das autoridades municipais e dos moralistas de plantão, que vigiaram de perto a ação dos seus habitantes[12].

A Guarda Civil de Porto Alegre. Revista A Mascara, 06/02/1925. Hemeroteca do MCSHJC.
Uma turma da Guarda Civil, organizada pelo sr. Otávio Rocha, governador da Cidade. A Guarda Civil de Porto Alegre. Revista A Mascara, 06/02/1925. Hemeroteca do MCSHJC.

De fato, a atenção dos poderes públicos ao local era geralmente no sentido de disciplinar os negros e pobres e os seus espaços, não raro com o emprego da violência. Porém, o real desejo da administração de Porto Alegre, cidade que se queria branca e afrancesada, era eliminar aquele território problemático das proximidades do seu perímetro urbano. Nesse sentido, Sérgio da Costa Franco não deixa escapar a ironia do fato de que, quando a Colônia Africana finalmente ganha a devida atenção da prefeitura, esta é no sentido de “tirá-la do mapa” da cidade:

Só em 1918, um relatório oficial da Intendência Municipal menciona expressivos melhoramentos nesse bairro: ‘Grandes foram os melhoramentos executados no bairro Rio Branco (antiga Colônia Africana) e que vieram dar às ruas com a retificação dos seus alinhamentos, modificação de seus perfis, facilitando-lhe o trânsito, colocação de cordões, construção de calhas e passeios’. A menção do Intendente Montaury à ‘ex-Colônia Africana’ dá a entender que a primitiva denominação já estivesse sob censura social, tendente a melhorar sua antiga imagem[13].

“Melhorar” a imagem, ou seja, urbanizar, também significava aumentar a décima urbana, ou seja, o imposto cobrado pela prefeitura aos moradores da área. Eduardo Kersting relata que a décima urbana era de 10% para as áreas urbanizadas, caindo para 5% para as áreas suburbanas. Naturalmente, permaneciam apenas as famílias que poderiam pagar para permanecer numa área urbanizada:

Aparentando, de início, um privilégio para a população suburbana, esse tipo de tributação foi, na verdade, um dos principais instrumentos de expulsão da população pobre das áreas centrais da cidade, pois dificultava financeiramente o seu estabelecimento no centro, empurrando-a para a periferia[14].

Conforme complementa Daniele Vieira, “[…] os impostos passam a ficar mais altos e provavelmente um novo padrão de moradia e de morador se estabelece. A população negra e com menor renda ali residente começa a migrar”[15]. Assim, nos anos 1910-1920 começava a mudança de ocupação daquele espaço urbano, mudando sensivelmente seu perfil étnico e de classe.

Mas também a religiosidade mudava: se os cultos afro-brasileiros permaneceram fortes na área da Colônia Africana durante muitas décadas, ainda no século XIX o terreno para uma nova paróquia era doado:

O senhor Polidório José de Souza e sua excelentíssima esposa dona Alexandrina da Silva Mariante aparecem como doadores, em 1888, de um terreno sito à rua Cabral, em plena Colônia Africana, para o bispado de Porto Alegre construir uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Piedade[16].

A Igreja de Nossa Senhora da Piedade, em 1918, no bairro Rio Branco, antiga Colônia Africana. Acervo desconhecido.
A Igreja de Nossa Senhora da Piedade, em 1918, no bairro Rio Branco, antiga Colônia Africana. Acervo desconhecido.

Contudo, a igreja só seria construída nos primeiros anos da década de 1910, tendo o padre Matias Wagner à sua frente a partir de 1916. O religioso escreve o relato Paróquia de N. S. da Piedade de Porto Alegre: 1916-1958, no qual detalha vários aspectos da paisagem e da vida na Colônia Africana:

O centro deste recanto da cidade, (os terrenos mais baixos), era quase todo alagadiço, propício a focos de insetos de toda espécie, não faltando também os batráquios que, em noites chuvosas, entretinham os moradores com o seu clássico coaxar, maravilhosamente combinado e compassado[17].

Postal de vista da Colônia Africana no início do século XX. Acervo desconhecido.
Postal de vista da Colônia Africana no início do século XX. Acervo desconhecido.

‘Nada de bandidagem nem de malandragem’: a memória afetiva da Colônia Africana

Apesar de todas as campanhas de condenação moral e estigmatizaçao, a Colônia Africana era, sobretudo, um território de trabalhadores pobres. Como continua o padre Wagner em seu relato, “os moradores, avaliados em cerca de 8 mil, ainda que de posição modesta e pobres, eram pacatos e respeitadores, entregue, cada qual a seus afazeres honestos”[18]. De fato, ali encontravam-se alfaiates, pipeiros[19], lavadeiras, doceiras, pedreiros, cozinheiras, motoristas, músicos, professoras, entre tantos e tantas outras.

Bica na rua Carlos Trein Filho, na bacia do Mont'Serrat. Fotografia de Daniele Machado Vieira em saída de campo de 23/01/2015. In: VIEIRA, 2017, p. 154.
Bica na rua Carlos Trein Filho, na bacia do Mont’Serrat, tradicionalmente usada pelas lavadeiras negras. Fotografia de Daniele Machado Vieira em saída de campo de 23/01/2015. In: VIEIRA, 2017, p. 154.
Pipeiro ou aguadeiro no início do século XX. In: Biografia duma cidade, Porto Alegre, 1941.
Pipeiro ou aguadeiro no início do século XX. In: Biografia duma cidade, Porto Alegre, 1941.
Cozinheiros. Virgílio Calegari, início do séc. XX. Foto 587f da Fototeca Sioma Breitman, Museu Joaquim José Felizardo de Porto Alegre.
Cozinheiros. Virgílio Calegari, início do séc. XX. Foto 587f da Fototeca Sioma Breitman, Museu Joaquim José Felizardo de Porto Alegre.

Como diz Jayme Moreira,

“Nada de bandidagem nem de malandragem, a Colônia Africana era um território de gente trabalhadora, honesta, correta e que estudava. Mais do que isto, era um lugar onde predominava a alegria, a amizade, não havia espaço para brigas”[20].

Foto de família de acervo particular. Fonte: Cidinha da Silva/Blog da Cidinha.
Foto de família de acervo particular, prov. década de 1920. Fonte: Cidinha da Silva/Blog da Cidinha.

Em entrevista a Irene Santos, Moreira ainda relata as comemorações do centenário da Colônia Africana:

[…] ocorridos em 7 de setembro de 1935 com intensa programação, que incluiu jogos de futebol, apresentação do Grupo Carnavalesco Aí Vem a Marinha e um grande baile no Salão do Rui, na época, Salão Modelo. As comemorações do centenário da comunidade negra corriam paralelas àquela que foi considerada uma das maiores festas e Porto Alegre: a exposição do Centenário da Revolução Farroupilha[21].

Não sabemos se a data continuou a ser comemorada naquele bairro afro-brasileiro, mas a Colônia Africana foi pródiga em grupos carnavalescos. Grupos como os Turunas ou os Prediletos foram estrelas de muitos bailes e desfiles de rua, e também foi nos carnavais do bairro que Horacina Corrêa, solista dos Turunas, revelou o seu talento. A respeito dess famosa cantora que teve projeção nacional, Daniele Vieira cita o emocionante testemunho de Dolzira Padilha, nascida em 1910 e moradora da rua Esperança[22] no início dos anos 1930:

‘Eu morava na Rua Esperança, mas eu não podia ver o cordão, esse Turuna saí, porque eu trabalhava numa fábrica de vime e a gente tinha que chegar na hora, quer dizer, eu tinha que me deitar cedo, né. O marido saia pro bloco e eu ia me deitá. Mas quando era seis horas eu não resistia, não resistia porque o cordão de volta, né 6h, 4h, da madrugada. Então quando ela vinha, uma voz que era assunto muito sério, sabe? A voz dela. Então ela cantava como é que eu vou canta…:

‘Ei-la seu coisada enfeza na batucada,

Ei-la seu coisada enfeza na batucada,

Pimenta do reino é preta, mas faz um pirão gostoso…’

Ai, quando essa mulher gritava isso, eu tinha que me levantá, ah eu tinha que me levantá, tinha que vê ela passá. Então ela passou muito bonita um ano, foi em 31, isso eu me lembro bem, ela toda de cossaco, era cor de rosa e branco a fantasia deles e essa mulher vinha cantando, mas então era um sucesso, agarravam ela numa cadeira, traziam ela na cadeira […] ela era Horacina Correa. E eu era louca por ela, eu ficava no portão […]’[23].

Horacina Corrêa em homenagem a Carmen Miranda, 1941. Acervo A. Canto. In: SANTOS, 2010, p. 92.
Horacina Corrêa em homenagem a Carmen Miranda, 1941. Acervo A. Canto. In: SANTOS, 2010, p. 92.
Horacina Corrêa ao centro com o grupo dos Turunas. Acervo Ieda Vieira Foques. In: SANTOS, 2010, p. 91.
Horacina Corrêa ao centro com o grupo dos Turunas. Acervo Ieda Vieira Foques. In: SANTOS, 2010, p. 91.

Porém, nem tudo era festa na Colônia Africana: também havia conflitos, preconceitos e disputas, como em qualquer outro espaço da cidade. Irene Santos nos traz as memórias de Neusa Pereira: “suas lembranças vão das casas simples de madeira, em cujos jardins sobressaíam as margaridas, as dálias e os copos de leite, às muitas casas de religião que agregavam homens negros e mulheres negras”[24]. E é sobre a disputa religiosa pelo espaço que Neusa Pereira fala:

 ‘Minha avó, dona Pimba, era uma exceção. Muito católica, saía pela redondeza para angariar fundos para a compra de tijolos para a igreja Nossa Senhora da Piedade, a primeira a ser construída na Colônia Africana.

O dinheiro do povo negro ajudou a levantar a igreja e a manter a paróquia, mesmo assim os negros não tinham fácil acesso. ‘O padre não atendia os pretos. Lembro que, certa vez, meu tio Simião levou o filho para batizar e o padre se negou. A confusão foi grande à porta da igreja. O batizado só saiu porque meu tio ameaçou ir em casa e buscar uma adaga e liquidar a questão’[25].

Ao lembrar da Colônia Africana, temos que pensar que é de relatos de vidas como estas que o espaço foi feito: muito mais de emoções, festas, devoções, dedicação e trabalho da população negra de Porto Alegre, do que de sensacionalismo nas páginas policiais dos jornais.

Muitos espaços negros urbanos em todo o Brasil, até hoje, sofrem da mesma estigmatização e pressão pela especulação imobiliária que a Colônia Africana sofreu há nem tanto tempo atrás, e pelos mesmos motivos: empurrar para fora da cidade aqueles que são indesejados, ou seja, os pretos e os pobres. Assim como na Colônia Africana, em muitos espaços negros Brasil afora, o único serviço público que funciona é a repressão pelo aparato policial.

Para quebrar esse ciclo, é preciso sempre rememorar a herança africana brasileira nas nossas cidades e identidades, reconhecer a aceitar a dor de saber que o país é fruto do trabalho escravizado, e, justamente por isso, erradicar o racismo que estrutura a nossa sociedade.


Referências:

FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1988. p. 117-118.

PADILHA, Dolzira. Entrevistas sobre os carnavais de Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 13/02/1991. Entrevistadores: Flávio Krawczyk e Wilson Azambuja Vieira Filho.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória Porto Alegre: espaços e vivências. Porto Alegre: Ed. Univerdsidade/UFRGS, 1999.

ROSA, Marcus Vinícius de Freitas. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-abolição (1884-1918). Campinas/SP: Tese apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2014.

SANTOS, Irene (coord. ed.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [s.n.], 2010. p. 76-89

VIEIRA, Daniele Machado. Territórios negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): Geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Porto Alegre: POSGEA-UFRGS, 2017. Dissertação de mestrado. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/177570

WAGNER, Matias. Paróquia de N. S. da Piedade de Porto Alegre: 1916-1958. Porto Alegre: s/editora, s/data.


 NOTAS:

[1] Segundo Eduardo Kersting, “alguns nomes de ruas da Colônia Africana apontam para personagens e idéias que gravitaram em torno do abolicionismo: temos a rua Liberdade, assim como temos a rua Castro Alves. Nada mais sensato ligar àquela área negra o ideal de liberdade e o nome do preclaro poeta dos escravos – ambas as ruas apareceram após a abolição, no calor dela”. (1999, p. 156-157)

[2] A Igreja da Nossa Senhora da Piedade, na rua Cabral, foi construída nos anos 1910 e a primeira a se estabelecer na Colônia Africana. Com isso, a fé católica passava a disputar o espaço com as casas de religião afro-brasileira, tradicionais daquele bairro, porém perseguidas pelas autoridades policiais.

[3] As atuais avenidas Osvaldo Aranha e Protásio Alves.

[4] VIEIRA, 2017, p. 43.

[5] ROSA, 2014, p. 3

[6] Essa família dá nome à avenida que hoje atravessa o bairro Rio Branco e se prolonga até o bairro Moinhos de Vento até hoje.

[7] KERSTING, 1999, p. 108-109

[8] SANTOS, 2010, p. 76-89

[9] SANTOS, 2010, p. 76-89

[10] FRANCO, 1988, p. 116-117

[11] PESAVENTO, 1999, p. 57

[12] KERSTING, 1999, p. 143

[13] FRANCO, 1988, p. 116-117

[14] KERSTING, 1999, p. 122

[15] VIEIRA, 2017, p. 171

[16] KERSTING, 1999, p. 108.

[17] WAGNER apud KERSTING, 1999, p. 138

[18] WAGNER apud KERSTING, 1999, p. 138

[19] Vendedores de água potável que percorriam a cidade com barris puxados por burros ou cavalos. Até a década de 1920, Porto Alegre não dispunha de um serviço de fornecimento de água potável confiável, sendo necessário, portanto, o serviço destes modestos trabalhadores.

[20] SANTOS, 2010, p. 76-89

[21] SANTOS, 2010, p. 76-89

[22] Atual rua Miguel Tostes.

[23] PADILHA, 1991, p. 2, apud VIEIRA, 2017, p. 139-141.

[24] SANTOS, 2010, p. 76-89

[25] SANTOS, 2010, p. 76-89

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