O valentão Fumaça da Colônia Africana

Fumaça, o valentão da Colônia Africana

Ary Veiga Sanhudo (1915–1997) foi advogado, político e escritor nascido em Porto Alegre, e que ficou conhecido pelos seus livros Porto Alegre: crônicas da minha cidade, em dois volumes. No segundo, Sanhudo relembra esse episódio policial, mas também com um quê de cômico, ocorrido na Colônia Africana: não sem deixar transparecer a linguagem racista da época, o autor narra as peripécias do valentão Fumaça, personagem conhecido do bairro e que é descrito como o típico habitante daquela área: negro, trabalhador pobre, beberrão, brigão. E, claro, que não demora a ter problemas com a polícia, ou, como eram assim apelidados no início do século XX, os ratos brancos.

Ainda que a resolução do conflito possa parecer inocente e farsesca, a descrição de Fumaça e de sua esposa corresponde a como o imaginário urbano representava os habitantes da Colônia Africana naquele tempo: pobres, racializados, e frequentemente envolvidos em conflitos com a lei.

 O valentão da zona[1]

[…]

Ali na Colônia Africana, na famigerada bacia, uma tarde de sábado, o negro Fumaça, que, ao que estou informado, era pedreiro de profissão, recebeu ‘as notas’ e foi pro ‘boteco’ mais perto espairecer as mágoas e encher a alma de cachaça.

O valentão Fumaça da Colônia Africana
Desenho de sketchbook da pesquisadora. Bico de pena, nanquim e aquarela sobre papel, 2018.

Lá pelas tantas, entre um trago e outro e principalmente muita prosa, se desentendeu com o parceiro e deitou-lhe a madeira, sem dó nem piedade. E foi rebuliço dos pecados!

Chamaram a polícia, e em coisa de minutos o mercadinho ficou coalhado de ‘ratos brancos’[2].

O negro Fumaça, moleque habituado a esses entreveros, quando viu a coisa preta passou a mão numa acha de lenha e era um Deus nos acuda!…

De saída, assim, olhou para a porta e, deparando com três guardiões da ordem, imperturbavelmente fardados de branco, não teve dúvida – quadrou o corpo, entrou rachando e os espalhou de golpe. Já se viu um ‘rato branco’ levar a durindana[3] ao chão e, pisando em cima, puxá-la com firmeza para desentortar a lâmina que, ao primeiro tirão, ficara que nem arco de barril velho amassado.

Enquanto isso, o ‘rolo’ ia aumentando e os ‘ratos brancos’ chegando de montão.

Guarda Civil. Revista A Máscara, 06/02/1925. Hemeroteca do MCSHJC.
Guarda Civil. Revista A Máscara, 06/02/1925. Hemeroteca do MCSHJC.

O negrinho mediu a situação, deu uma olhada, viu um claro, e enveredou pro lado duma obra que existia ali por perto.

Quando se acercou duma pilha de tijolos, atirou fora a acha de lenha, que, nessa altura, mais parecia um graveto esfarpelado, e passou a arremessar tijolos, sem dar a mínima folga aos policiais. De vez em quando, um ‘rato branco’ mais afoito investia decidido e Fumaça só desviava o golpe, quadrando o corpo, e com célere rasteira fazia o homem amontoar descadeirado prum canto da sarjeta.

Aquele não voltava mais!

E por aí a briga se estendeu até ao entardecer, porque enquanto houve tijolo, ninguém chegou perto do Fumaça!

Chamaram o delegado e de nada adiantou.

Já noitinha, entre tijolos e impropérios, e inúmeras e inúteis vozes de prisão, todo o mundo cansado, ouviu-se um zumzum desusado e uma mulata baixa, gorda e bexigosa, irrompeu do próprio lado dos guardas e, caminhando rápida em direção ao Fumaça, levantou a mão e deu-lhe tremendo bofetão, que o apanhou assim pelas costas, ombros, pescoço, cabeça e tudo…

Todo mundo ficou perplexo!

Então, a dona do valentão berrou:

– Negro desgraçado, vagabundo, sem-vergonha, desordeiro!…

O homem se encolheu todo e a recém-chegada deu-lhe mais uma série de trompaços e disse:

– Não tem mais nada a fazer do que andar brigando?

Depois, virou-se para o lado dos ‘ratos brancos’, onde estava a autoridade policial, e disse:

– Pode deixar, seu delegado, eu vou dar comida pra esse negro cachorro e em seguida já levo ele no Posto.

E metendo as mãos no Fumaça o foi levando aos trambolhões, abaixo de gritos e desaforos, rua afora…”

Ary Veiga Sanhudo

REFERÊNCIAS:

[1] SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas da minha cidade. V. 2. Porto Alegre: Editora Movimento/Instituto Estadual do Livro, 1975. P. 115-116.

[2] Como eram chamados os policiais, à época, devido à cor branca das suas fardas.

[3] Espécie de faca ou punhal.

Deixe um comentário