Em 1933, o viaduto da avenida Borges de Medeiros ainda era cercado de barrancos escavados na rocha, e arbustos que cresciam junto às escadarias, ainda sem os edifícios altos que conhecemos hoje. Aberto ao trânsito há apenas dois anos naquela época, o viaduto começava a povoar a imaginação dos habitantes da cidade como palco de acontecimentos dramáticos, inclusive suicídios. Conforme o jornalista Celito De Grandi,
“[…] há continuadas versões a indicar a construção do viaduto Otávio Rocha, no início da década de 30, como o leitmotiv. Os cronistas registraram repetidos episódios de jovens ensimesmados, nos altos da Duque, a contemplar o Guaíba e a Zona Sul da cidade, para depois se jogar em vôos fugidios”[1].
Essa triste realidade é uma das hipóteses que os repórteres do Diário de Notícias aventam para explicar o misterioso atentado a bala que se deu contra Valdemar Azevedo numa noite fria de junho. Aqui, cabe lembrar que a posse de armas não era controlada da mesma forma que é hoje, e que não era raro pessoas comuns circularem normalmente pela cidade portando revólveres. Logicamente, as consequências estão nas páginas policiais…
“Um atentado misterioso no Viaduto da Av. Borges de Medeiros[2]
Em circunstancias ainda não esclarecidas um homem é ferido a bala numa das suas escadarias
Depois de fazer declarações vagas, a vitima afirma ter sido ela propria a autora do ferimento.
Os indicios colhidos pela reportagem do DIARIO DE NOTICIAS, porém, põem em xeque o último depoimento do ferido
Porto Alegre está se tronando a cidade dos misterios.
Raro é o dia em que os jornais não tenham a noticiar fatos cuja explicação não póde ser perfeitamente encontrada.
Ora é um detento, que, num lance rocambolesco, consegue iludir a vigilancia dos guardas e fugir da Casa de Correção, sem deixar vestigios, que levam a policia a descobrir o seu paradeiro. Outra vez, é uma casa assaltada misteriosamente, sem que nenhuma das pessoas que nela se achavam, na hora em que ela devia ter sido visitada pelos meliantes, notassem algo de anormal. Outras, é o roubo de joias por ladrões audaciosíssimos que desaparecem como sombras… E, finalmente, são os crimes praticados por bandidos desconhecidos até mesmo de suas vitimas, ou homens que aparecem mortos em seus leitos sem que se saiba quais os motivos de sua morte…???
Mais um misterio
Á esquina da Avenida Borges de Medeiros com rua Coronel Fernando Machado, onde na noite de vespera um dos carros da Guarda Civil havia colhido um auto onibus, reduzindo-o a escombros, dois agentes da Diretoria do Trafego palestravam, tiritando de frio.
Subito, sua atenção foi despertada por um estampido que partir das escadarias do viaduto da avenida, áquela hora completamente envoltas pela cerração.
Um homem ferido
Os agentes pretendiam correr para o ponto de onde lhes parecêra haver partido o tiro, quando viram, caminhando em sua direção, a cambalear nas escadarias, o vulto de um homem, que se agarrava ao corrimão com visivel esforço.
Em vista disso, os dois agentes se aproximaram, indagando o que se passava.
O homem, que trazia um sobretudo de gabardine, dirigindo-se aos policiais informou-os que fôra atacado, no alto da escadaria, por um individuo desconhecido.
Esse, armado de um revolver, escondera-se por detrás de um dos pilares da escadaria, na esquina da rua Duque de Caxias, e quando ele ali passára, detonára seu revolver, ferindo-o no flanco esquerdo.
Para a Assistencia
Em vista dessas declarações, os agentes da Diretoria do Trafego, providenciaram para a vinda de um dos auto-ambulancia da Assistencia Publica, afim de que o ferido fosse transportado para o Posto Central.
Quando se dispunham a chamar um guarda civil, para que esse pedisse socorro, chegou ao local um desses policiais, que estando de serviço em frente ao Museu do Estado, ouvira a detonação e corrêra a ver o que se passava.
Esse agente chamou a Assistencia, tendo comparecido ao local um auto-ambulancia, que transportou o ferido ao Posto Central.
Ali ele foi medicado pelo dr. Rache Vitelo e dou[to]rando Franco.
O ferido, que disse chamar-se Valdemar Azevedo, apresentava um ferimento por projetil de arma de fogo, com orifício de entrada no sexto espaço inter-costal do lado esquerdo.
Como o ferimento fosse de bastante gravidade, foi ele recolhido ao Hospital de São Francisco, afim de ser submetido a uma intervenção.
O Delegado
Emquanto era chamada a Assistencia Publica, o fato era tambem levado ao conhecimento do dr. Mario Cunha, delegado de plantão á Chefatura de Policia, que imediatamente se conduziu ao local, tomando todas as providencias exigidas.
Assim, a referida autoridade, fazendo-se acompanhar de seu amanuense, dirigiu-se, depois de haver ouvido os agentes que haviam prestado os primeiros socorros á vitima, ao Hospital São Francisco, afim de ouvir as declarações de Valdemar Azevedo, que já se sabia trabalhar na firma Azevedo Bento e Cia., como chefe do serviço de navegação.
O que disse o ferido
Logo ás primeiras perguntas do delegado, Valdemar Azevedo, que estava em estado bastante grave, narrou, novamente, fato como havia descrito aos agentes da Diretoria do Tráfego, logo após o ocorrido.
Disse que havia sido atacado e ferido quase a queima-roupa por um desconhecido, quando se dispunha a descer a escadaria do viaduto da rua Duque de Caxias.
Afirmou não suspeitar de pessoa alguma, pois não tinha inimigos e se negou a dar outras informações, alegando que falar lhe custava muitissimo.
Como os medicos aconselhassem não exigir que o enfermo falasse, o delegado saiu, pronto a fazer investigações que esclarecessem um pouco o misterioso fato.
Em virtude do sigilo das investigações policiais, a reportagem do Diário de Notícias se pôs em campo, afim de vêr se conseguia trazer alguma luz ao fato.
Primeiramente procuramos falar com o proprio ferido, indo para isso ao Hospital São Francisco.
Valdemar Azevedo, porém, não queria falar e mesmo seu estado era bastante grave para que insistissemos.
Resolvemos, assim, ouvir pessoas da familia.
Falamos com a esposa do ferido. Essa senhora, rodeada de amigas, disse-nos que o fato a havia surpreendido.
Não sabia quem poderia ter ferido seu marido, nem os motivos que o haviam preso fóra de casa até ás 5,30 da manhã.
No local
Como nada conseguissemos, dirigimo-nos ao local do fato.
Baseados nas informações que haviamos conseguido sobre a maneira como deveria ter ocorrido a cena de sangue, desejavamos fazer a reconstituição da mesma. O desenhista da redação nos acompanhava.
Chegados ao viaduto, começamos por examinar detidamente o local do atentado. Vasculhamos todo[s] o[s] barrancos e arbustos, na esperança de encontrar indicios ou sinais que pudessem ter sido deixados pelo criminoso.
Não obstante nos demorarmos nesse exame, nada encontramos de anormal.
Fizemos, então, a reconstituição e nos retiramos.
Varias versões
A reportagem não estava satisfeita. Nada vinha fazer luz sobre o fato. Unicamente algumas pessoas informavam que Valdemar Azevedo mantinha relações com mulheres de vida facil. Seria verdade?
Era o que nos faltava investigar.
Depios de algumas tentativas infrutíferas, conseguimos saber que de fato, a vítima do atentado visitava seguidamente mulheres que trabalham no ‘cabaret’ Chez Nous.
Ainda domingo ultimo fôra visto em companhia de outros amigos naquela casa de diversões, donde saira para se recolher á sua residencia.
Soubemos, tambem, que em torno desse fato o delegado Mario Cunha estava fazendo girar suas investigações, por suspeitar que o autor dos ferimentos fosse algum dos amantes das aludidas mulheres.
Conseguimos, tambem, saber que a policia ia rodear com suas malhas os agentes da Diretoria do Trafego, que haviam atendido o ferido.
Supunham as autoridades que houvesse sido um deles o autor do ferimento, que nesse caso teria sido casual.
Quando a vitima viésse descendo a escadaria, um dos guardas, ao mecher no revolver ou de outra qualquer forma, tivesse feito disparar sua arma, indo atingir Azevedo. Este, sabendo-se vitima de um acidente narrára o fáto conforme lhe haviam pedido os culpados.
Havia ainda a versão de haver Valdemar Azevedo sido vitima de um dos embarcadiços da Companhia Comercio e Navegação, despedido por ele, e da qual é alto funcionario.
Nenhuma dessas versões, porém, se baseiam em ftos concretos e nós as registramos, simplesmente por as termos conseguido na marcha de nossas investigações.
Suicidio?
Já haviamos composto a noticia acima quando soubemos que Valdemar Azevedo tinha se resolvido a falar, dizendo que fôra ele proprio quem se ferira.
Não contára nada á policia. Apenas disséra isso a um dos seus chefes, o dr. Leopoldo Bastian, da firma Azevedo Bendo e Cia.
Este, porém, fora imediatamente á Chefatura, onde narrára o ocorrido ao delegado Mario Cunha.
O nosso informante disse-nos que a policia havia encontrado a arma de que se servira Valdemar para ferir-se num dos barrancos existentes ao lado da escadaria. Justamente no ponto onde a reportagem do Diário de Notícias estivéra a procura de rastos ou indicios… E onde a nossa reportagem nada encontrára, em pleno dia, haviam encontrado um revolver, depois de baixar o sol…
O ferimento de Valdemar, tambem não léva a que se creia haver sido ele proprio quem se deu o tiro. A bala penetrando no lado esquerdo e, segundo conseguimos saber, o seu percurso é de traz para deante e de cima para baixo.
Não sabemos se o delegado Mario Cunha vai abandonar as diligencias iniciadas em torno do fato. Lembramo-lhe, porém, que há quem para evitar um escandalo é capaz de tudo. E que colocar um revolver em determinado local, com uma capsula detonada, tambem não custa grande coisa…”
Autoria desconhecida
Referências:
[1] DE GRANDI, Celito. Diário de Notícias: o romance de um jornal. Porto Alegre: L&PM, 2005, p. 54.
[2] Diário de Notícias, 27/06/1933, p. 5. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. A grafia original foi mantida.