Planta baixa de moradia em uma avenida e em uma estalagem. Detalhe da reportagem "Onde moram os pobres", parte 1, de Everardo Backheuser. Revista Renascença, Ed0013-1, Ano II, Março 1905, nr 15, p. 92. BNDigital_

“Onde moram os pobres”, por Everardo Backheuser (parte 1)

Everardo Adolpho Backheuser (1879-1951) foi, entre outras coisas, renomado engenheiro, geólogo e deputado estadual pelo Rio de Janeiro. Nos primeiros anos do século XX, escreveu reflexões a respeito das grandes reformas urbanas por que a cidade vinha passando na administração do prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913). Essa reforma, que ficou conhecida como o “Bota-abaixo” pela quantidade de demolições de casario colonial que a caracterizou, foi responsável pela abertura da grande Avenida Central, hoje avenida Rio Branco, símbolo da modernização da capital carioca.

Esse período foi também caracterizado pela preocupação com o problema da habitação popular, ou seja, da população mais pobre da cidade, buscando não apenas proporcionar casas com boas condições de iluminação e ventilação, mas também disciplinar a vida familiar dos trabalhadores pobres através do espaço. Nesse sentido, Backheuser escreve este artigo na revista Renascença, detalhando os diversos tipos construtivos de habitações populares presentes no Rio de Janeiro: as casas de cômodos, as estalagens, os cortiços, as avenidas e as favelas. Salvo as avenidas, todos eles são tipos de construções que traziam ainda os velhos problemas de falta de ventilação, de saneamento e de iluminação, ou seja, ainda não eram as moradias populares projetadas atendendo rigorosamente estes quesitos de habitabilidade e higiene. Contudo, a descrição de Backheuser ajuda a compreender esses tipos construtivos, que não eram únicos do Rio de Janeiro, mas que podiam ser encontrados em todo o país.

No caso de Porto Alegre, contudo, as avenidas de que se tem notícia até aqui não dispunham de uma área aberta aos fundos como as descritas pelo engenheiro. Ao contrário, estariam muito mais próximas das estalagens descritas pelo autor, o que pode indicar uma variação regional de significado para o mesmo termo.

Neste blog você pode encontrar mais informações sobre as avenidas da antiga Porto Alegre aqui.

 

 “Onde moram os pobres[1]

Hoje que a administração publica deixando o campo theorico dos relatorios espalhafatosos envereda afinal pelo terreno pratico da execução dos melhoramentos, hoje que se vai remodelando a velha metropole rasgada por avenidas em todos os sentidos, demolindo-se e reconstruindo-se, soffregamente, hoje que se sente, graças a isso, graças a isso, esperança de ser ver em breve um Rio de Janeiro formoso e hygienico, é hoje tambem occasião de se voltarem as vistas para as lugubres moradas onde vegeta a população indigente da cidade.

Mesmo para isso já olhou o energico administrador municipal, apezar de ter a sua attenção sollicitada por uma diversidade grande de assumptos, incluindo na lei de obras disposições terminantes para acabar com as habitações infectas, não o fazendo, porém, de chofre, não atirando pois os moradores a uma vida nomade, agglomerando-os em outros antros, como só pode querer fazer uma má orientação hygienica, mas lentamente por um trabalho persistente e ininterrupto.

É por certo curioso mostrar, principalmente ao leitos aristocrativo desta aristocratica Renascença, o que são ainda hoje essas habitações, para dizer depois – assumpto de outro artigo – o que já se tem feito no Rio para melhoral-as e o que se póde ainda fazer ou ainda pela iniciativa particular, já do capitalista individualmente, já de associações de caridade ou cooperativas, ou pela iniciativa do Estado explorando tambem ou monopolisando até esse genero de serviços.

***

São as ruas da Cidade Nova, da Gambôa, da Saúde, de Frei Caneca (que sempre foram a habitual residência da gente pobre) as que hoje continuam a ser procuradas e por isso se enchem aidna mais os commodos que os minguados vencimentos dos operarios permittem pagar.

E assim reunida, agglomerada, essa gente – trabalhadores, carroceiros, homens ao ganho, catraeiros, caixeiros de bodegas, lavandeiras, costureiras de baixa freguezia, mulheres de vida reles, entopem as ‘casas de commodos’, velhos casarões de muitos andares, divididos e subdivididos por um sem numero de tapumes de madeira, [a]té nos vãos de telhados entre a cobertura carcomida e o forro carunchoso. Ás vezes, nem as divisões de madeira; nada mais que saccos de aniagem estendidos verticalmente em sceptos permittindo quasi a vida em commum, numa promiscuidade de horrorisar. A existencia é ahi, como se póde immaginar, detestavel.

Palacetes de feição afidalgada, por certo residencias nobres nos tempos da colonia ou do imperio, estendidos pelas ruas Camerino, Barão de S. Felix, Visconde de Itauna, Riachuelo e um milheiro de outras, encobrem com o seu aspecto agigantado a negra miseria de uma população enorme. Ahi se cosinha em commum, em corredores escuros, com ameaças permanentes de incendio que lamberiam rapidamente aquelles andares cheios de infortunio; mesmo nos vãos de escadas, escondem-se fogareiros, luzindo com as suas brazas vermelhas como as faiscantes pupillas de gatos, a se aquecerem nos borralhos. As alcovas escuras ficam pesadas de camas.

Italianos vadios resonam dias a fio nesses ambientes nauseabundos; negras chegas de oleo na carapinha decantam modinhas, lavando roupas ali mesmo nas alcovas, e estendendo-as em telhados, quantas vezes em cordas nos proprios aposentos que adquirem pela persistencia uma athmosphera quente e humida, impossivel de respirar; creanças núas e sujas esfregam-se no chão immundo, sujando-o mais; e no meio disso, mulheres de baixa extracção, pretas em geral, em trajes ignobeis, baralhando-se na mesma colmeia com moças pobres mas recatadas, que cosem para os arsenaes pesadas tarefas, mantendo os seus quartinhos luxuosos quase á custa de asseio, enfeitadas paredes com retratos queridos – ilhas de limpeza naquelles oceanos de immundicie.

A casa de commodos é a mais anti-hygienica, a mais detestavel das habitações collectivas. Contra ella pouco valem as rigorosas disposições da lei desde que não haja a executal-a funccionarios criteriosos. O edificio em si é habitavel, é confortavel mesmo. Os seus vastos salões, os seus quartos espaçosos, as suas escadarias largas e suaves, os seus vestibulos luxuosos, restos de uma riqueza antiga, seriam excellente moradia si a necessidade, por que não dizer assim, si a necessidade não obrigasse a transformação desses quartos, desses sações, desses vestibulos em cubiculos estreitos e escuros.

Só aos poucos, e quando for possível, se irão transformando as ‘casas de commodos’ pela acção dos poderes competentes trabalhando combinadamente, mas sem soffreguidão não desalojando familias por terem ruim habitação para mettel-as em outros pontos já sobrecarregados e que mais sobrecarregados ficarão com esse excessivo contrapeso, esvaziando a estes em seguida por medidas tyrannicas, pondo afinal a população pobre na contingencia de ter a vida errante dos vagabundos e, o que é peior, ser tida como tal; ou então essa transformação se fará seguindo outros proprietarios expontaneamente, nos casos exequiveis, o exemplo do Sr. Visconde de Cardoso da Silva que fez de um desses casarões infectos, aprazivel vivenda tal a quantidade de areas arejadas em que a luz e o ar se espalham em golfadas de saúde.

Póde-se mesmo aconselhar até novas construcções desses grandes predios seguindo typos felizes de engenheiros extrangeiros. Os Srs. Magnani e Rondoni projectaram para Milão, ha pouco tempo, um edificio em uma area de pouco mais de 2.500 m2 tendo 400 aposentos, todos recebendo fartamente ar e luz do exterior por meio de areas dispostas com felicidade, havendo além disso jardins e sendo toda a loja occupada com banhos populares e outros compartimentos não destinados á moradia.

***

Já em melhores condições que a ‘casa de commodos’ é a estalagem. Na ‘estalagem’ ha mais ar, ha mais luz, há um pouco mais de bem estar e de conforto.

Em um pateo central creoulas, portuguezas, italianas, uma ou outra hespanhola, lavandeiras em geral, agglomeram-se em torno de tinas e no labutar diario, entre a pequerruchada travessa e alegre, passam as horas em uma agitação gritada e atordoante. Mas ahi a vida nocturna não tem a promiscuidade da ‘casa de commodos’.

Pequenas casinhas de porta e janella, alinhadas, contornando o pateo, são habitações separadas, tendo a sua sala da frente ornada de registros de santos e annuncios de côres gritantes, sala onde se recebem visitas, onde se come, onde se engomma, onde se costura, onde se maldiz dos visinhos, tendo tambem a sua alcova[2] quente e entaipada, separada da sala por um tabique de madeira, tendo mais um outro quartinho escuro e quente onde o fogão ajuda a consumir o oxigeneo, envenenando o ambiente. Dorme-se em todos os aposentos. (Vide as figuras 1 e 3.)

Essas habitações que as leis municipaes condemnam com o maximo de rigor tendem por isso mesmo a desapparecer. Como são muitas, porém, algumas relativamente recentes, outras em concertos por ordem da Directoria de Saude Publica, perdurarão por certo emprestando á cidade um aspecto pittoresco com o seu tic de originalidade de costumes, de onde sahirá gravado o typo dos trovadores noctivagos de viola e sanfona perdendo-se pela noite a dentro em melopéas insipidas ou em fandangos em que muita vez termina a funcção pelo rolo e pela navalha.

As estalagens antigas têm um aspecto mais primitivo, mais grotesco, mais mal acabado. São ligeiras construcções de madeira que o tempo consolidou pelos concertos clandestinos, atravancadas nos fundos de predios, tendo um segundo pavimento acaçapado como o primeiro e ao qual se ascende difficilmente por escadas ingremes, circumdado tambem por varandinhas de gosto exquisito e contextura ruinosa. Isto que ahi fica resumido é o ‘cortiço’, cujo interior a penna naturalista de Aluisio Azevedo deixou para sempre gravada com o seu magestoso traço pinctural.

Na ‘estalagem’ e no ‘cortiço’, o facies é igual si bem que neste as condições hygienicas sejam mais inferiores. As alcovas são mais quentes, mais baixas e mais escuras; a separação das familias é muito menos accentuada; a vida em commum, diurna ou nocturna, é por isso mesmo mais promiscua. Há ‘cortiços’ onde se penetra com o lenço ao naris e donde se sahe com nauseas.

Essas habitações tendem e hão de desapparecer si os futuros administradores municipaes seguirem a recta norma que está hoje traçada e não ficarem seduzidos por uma apparente melhoria dessas detestaveis construcções ordenando que se as concerte, preferindo ver melhoradas, em apparencia repito, esses ‘cortiços’ e ‘estalagens’ ao em vez de deixar o Tempo consumil-os para que floresçam nesses mesmos locaes as encantadoras ‘villas operarias’.

***

Os ‘cortiços’ e ‘estalagens’ já vão cedendo lugar a essa outra habitação popular que o vulgo e a sisuda linguagem official classificaram de ‘avenidas’.

A ‘avenida’ é afinal uma estalagem aperfeiçoada. Uma rua central, calçada e com passeios, fica ladeada por casinhas. Essas casinhas, porém, são perfeitamente separadas, com a sua installação de cosinha, banheiros e latrinas independentes, bem ladrilhados esses compartimentos como mandam os regulamentos para as mais ricas residencias.

Além da rua com serventia commum apenas para transito, cada casa tem a sua area espaçosa e cimentada, destinada em geral a lavanderia. Quartos arejados substituem as lugubres alcovas das estalagens.

(Para observar os exteriores a figura n. 2 é sufficiente; o schema n. 3 dá perfeita idéa da disposição interna mais frequente na ‘estalagem’ e na ‘avenida’ e serve para comparal-as.

A ‘avenida’ não é, muito longe está mesmo das villas jardins, abundantemente arborisadas com oxigeneo a produzir-se sempre graças a frondosas arvores, com jardins floridos como são exemplo algumas das villas da Companhia Saneammento; não são isso, são coisa muito aquem, são, porém, um grande passo dado para a hygiene effectiva das habitações pobres.

Na ‘avenida’ falta o arvoredo, falta o jardim, falta o encanto do bucolismo tão necessario para suavisar a rude existencia do proletario; mas na ‘avenida’ já há luz, já há o ‘home’[3], o lar separado, já póde haver a vida em familia isoladamente esse tão precioso elemento moral de que carece o homem de trabalho.

***

Destacando-se de tudo isso pela originalidade e pelo inesperado é o ‘morro da Favella’.

O ‘morro da Favella’ nada mais é que o antigo morro da Providencia, perfurado pelos dois tunneis da Gamboa, os quaes ligam a linha tronco da Central á Estação Maritima. É assim chamado depois da lucta de Canudos, pelos solados que de lá voltaram e que por certo charam o seu quê de semelhança entre o reducto dos fanativos e o reducto da miseria do Rio de Janeiro.

O ‘morro da Favella’ é ingreme e escarpado; as suas encostas em ribanceiras marchetam-se, porém, de pequenos casebres ‘sem hygiene, sem luz, sem nada’.

Imaginem-se, de facto, casas (!) tão altas como um homem, de chão batido, tendo para paredes trançados de ripas, tomadas as malhas com porções de barro a sopapo[4], latas de kerozene abertas e justapondo-se, taboas de caixões; tendo para telhado essa mesma mixtura de materiaes presas á ossatura da coberta por blocos de pedras, de modo a que os ventos não as descubram; divisões internas mal acabadas, como que paradas a meio com o proposito único de subdividir o sólo para auferir proventos maiores. É isto pallida idéa do que sejam essas furnas onde ao mais completo desprendimento por comesinhas noções de asseio, se allia uma falta d’agua quasi absoluta mesmo para beber e cosinhar.

Quem olha a ‘Favella’ de longe tem com certeza, uma impressão lisongeira, impressão mais ou menos reprodusida pela gravura n. 4; mas quem sobe, desde logo depara com essas horrendas choças figuradas nas gravuras ns. 5 e 6.

Para alli vão os mais pobres, os mais necessitados, aquelles que pagando duramente alguns palmos de terreno, adquirem o direito de escavar as encostas do morro e fincar com quatro moirões os quatro pilares do seu palacete. Os casebres espalham-se por todo o morro; mais unidos na base, espaçam-se em se subindo pela rua (!) da Igreja ou pela rua (!) do Mirante, euphemismos pelos quaes se conhecem uns caminhos estreitos e sinuosos que dão difficil ascesso á chapada do morro.

Alli não moram apenas os desordeiros e os facinoras como a legenda (que já a tem a ‘Favella’) espalhou; alli moram tambem operarios laboriosos que a falta ou a carestia dos commodos atiram para esses lugares altos onde se goza de uma barateza relativa e de uma suave viração que sopra continuamente dulcificando a rudeza da habitação.

O illustre Dr. Passos[5], activo e intelligente Prefeito da cidade, já tem as suas vistas de arguto administrador voltadas para a ‘Favella’ e em breve providencias serão dadas de accordo com as leis municipaes, para acabar com esses casebres.

É interessante fazer notar a formação dessa pujante aldeia de casebres e choças no coração mesmo da capital da Republica, eloquentemente dizendo pelo seu mudo contraste a dois passos da Grande Avenida, o que é esse resto de Brasil pelos seus milhões de kilometros quadrados”.

Everardo Backheuser


Abaixo, as páginas da publicação encontradas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional:

BNDigital_Renascenca-Ed0013-1-Ano-II-Marco-1905-nr-15-p092-Onde-moram-os-pobres-copiar

Image 1 of 6

Planta baixa de moradia em uma avenida e em uma estalagem. Detalhe da reportagem "Onde moram os pobres", parte 1, de Everardo Backheuser. Revista Renascença, Ed0013-1, Ano II, Março 1905, nr 15, p. 92. BNDigital_


Referências

[1] Renascença – revista mensal de letras, sciencias e artes. Rio de Janeiro, anno II, março 1905, Num. 13, p. 89-94. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[2] Quarto sem janelas, típico das antigas casas coloniais portuguesas que se construíam nas cidades brasileiras.

[3] Home, ou casa em inglês. Aqui, a palavra dá o sentido de lar familiar, ou seja, do espaço privativo da família nuclear, caracterizado pelo aconchego mas também pela separação individual de cada membro da família em quartos, evitando a promiscuidade.

[4] Sopapo é uma técnica construtiva tradicional e usada pelas populações mais pobres até hoje devido à sua simplicidade e ao uso de materiais facilmente encontrados: galhos e troncos de árvores, barro e palha. Sobre a estrutura de troncos e galhos trançados da construção, atira-se a mistura de barro e palha, que vai sendo socada e preenchendo os vazios do tramado até formar as paredes. Daí o nome sopapo.

[5] O então prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos (1836-1913).

1 Comment

Deixe um comentário