Revista Renascença, Ed0015-1, Ano II, Maio de 1905, número 15, página 185. Detalhe.

“Onde moram os pobres”, por Everardo Backheuser (parte 2)

A partir do final do século XIX, as cidades brasileiras passavam a acomodar um contingente crescente de operários e trabalhadores pobres, atraídos pelas indústrias e pelas oportunidades de trabalho. Isso gerou uma pressão cada vez maior por habitações de baixo custo, e, inicialmente, eram as piores da cidade que sobravam para acomodar essa população mais pobre: cortiços, casas de cômodos, avenidas, etc. Porém, a aglomeração de pessoas nesses tipos de casas e quartos preocupava as autoridades. Primeiramente, no sentido sanitário: como manter sob controle o risco constante de epidemias com tantas pessoas dividindo poucos quartos sem condições mínimas de saneamento, iluminação ou ventilação? Depois, no sentido moral: como assegurar a decência com tanta promiscuidade?

Conforme nos explica em seu artigo na revista Renascença, o engenheiro Everardo Backheuser (1879-1951), aí entram as vilas operárias. Esses complexos residenciais projetados especificamente para trabalhadores – e, seguidamente, construídos por indústrias para acomodar seus operários nas cercanias das fábricas – resolviam tanto os problemas sanitários quanto os “morais”. Seu desenho garantia a todos ambientes iluminados e ventilados, com latrinas próprias, bem como a privacidade das famílias e sua devida separação dos homens solteiros. Estes, por sua vez, contavam com cômodos separados das famílias, procurando garantir que encontros clandestinos não acontecessem facilmente. Tanto a proximidade das fábricas quanto a divisão dos espaços eram formas de disciplinar o cotidiano e a vida familiar das classes trabalhadoras, procurando afastá-las de diversões populares como o jogo, a música, a bebida e as tavernas. Com o aumento da população urbana, temia-se pela segurança e pela ordem pública caso a rotina dos trabalhadores pobres não fosse assim vigiada.

Everardo Backheuser tratou dos tipos de moradias populares consideradas problemáticas em matéria publicada na mesma revista intitulada “Onde moram os pobres”

 

 “Onde moram os pobres – as ‘villas’ da Companhia Saneamento[1]

Chamam-se villas operarias… Mas devo acaso definir eu o que sejam essas habitações hygienicas e baratas que todos os paizes civilizados construem para dar agasalho ás classes proletarias? Todos sabem o que são ellas. Um pouco de cultura intellectual, um pouco de viajens pelo velho mundo, a só leitura de uns tantos romancistas do naturalismo são o bastante para saber a gente culta que ellas existem.

O que não sabe por certo a aristocracia fluminense é que existem mesmo entre nós essas essas villas operarias ou, si for desagradavel e de metter medo o qualificativo de operarias, essas casas populares como já as vão chamando os especialistas extrangeiros.

Julguei pois quasi um dever para mim que por estas mesmas columnas procurei descrever o que é a ‘casa de commodos’, o ‘cortiço’, a ‘estalagem’, dizer tambem do antonymo dessas nojentas moradas onde se estiola a preciosa vida do povo.

E descrevendo, como vou procurar fazer, as villas da Companhia Saneamento, evidenciarei que mesmo aqui, nestes atrasados Brasis, já houve quem cogitasse do assumpto, quem a elle se dedicasse. E por esse pequeno exemplo ficarão os governantes sabendo do pouco que ha feito como (si me leram o que não é crivel), ficaram, pelo penultimo numero da Renascença conhecendo o horroroso estado geral das demais habitações pobres.

Não me cansarei de repisar, de repetir em varios tons e feitios, que o problema é, como nenhum outro, momentoso e urgente.

Começaram as villas da Companhia do Saneamento do Rio de Janeiro a ser construidas em 1890 quando se iniciaram os trabalhos da Villa Ruy Barbosa que irrompeu na esquina das ruas Senado e Invalidos, no terreno mesmo onde existiam antigos cortiços e predios velhos.

Em 1891, iniciavam-se os serviços de construcção das villas Arthur Sauer, Senador Soares e Maxwell, a primeira no Jardim Botanico, nas visinhanças da Fabrica de Tecidos Carioca e as duas ultimas na rua Maxwell, em Villa Isabel, tambem proximas a uma outra fabrica de tecidos – a Confiança Industrial.

Ainda em 1892, principiavam-se a assentar alicerces para uma outra villa na estação do Sampaio, nas margens, pois, da E. F. Central do Brasil.

Iniciados que haviam sido os trabalhos mais ou menos febrilmente com o desejo evidente de favorecer pontos os mais affastados, e para logo surge entre governo e companhia uma questão, questão essa que se vem movendo até hoje, morosa e pachorramente, por todos os degráos judiciarios. Eu não quero (livre-me Deus!), dizer aqui quem tem razão, quando os homens da lei, os unicos que avaramente reservam-se o direito de perceber dos textos, ainda não disseram a sua ultima palavra no labyrintho das replicas e treplicas.

O que lamento, como brasileiro, como carioca, como patriota, é que graças a isto, uma falta de encontro de vistas, esteja a Capital Federal se privando de dar alojamento sadio a 60.000 pessoas, deixando-as morrer nos ‘cortiços’ sordidos e nas repellentes ‘casas de commodos’.

A questão surgio… mas para que dizer por que surgio a questão, isto é a demanda, a chicana? Passe-se calmamente sobre ella e veja-se o que há feito. Basta (penso eu) que se diga que o casus belli originou-se do primeiro dos favores feitos em 1888 a Arthur Sauer, incorporador da Companhia. Os favores eram: isenção por 20 annos dos direitos de importação para os materiaes de construcção, objectos e apparelhos de que tivesse a Companhia necessidade, para a realisação das obras; isenção por 15 annos do imposto predial para os edificios que construisse; direito de desappropriação para os terrenos onde quizesse edificar, agua necessaria ao uso dos moradores.

Em resumo, basta dizer que o governo negou licença para que a Companhia importasse livremente uns tantos materiaes, o que ella julgava poder fazel-o. D’ahi a questão… e (o que é triste), a paralisação dos serviços, dando como resultado não ser construida nem uma só villa a mais a não serem ultimadas mesmo as já iniciadas.

Cinco são, pois, hoje as villas construidas. A mais importante dellas é a Villa Ruy Barbosa, implantada no coração da cidade, tendo tido até hoje muito boas condições sanitarias, o que de certo modo responde áquelles que suppõem indispensavel affastar para os arrabaldes as habitações populares.

A Villa Ruy Barbosa é exteriormente sumptuosa. O corpo central e os corpos extremos em tres pavimentos, tendo intercallados outros corpos em dois pavimentos apenas, dão ao conjuncto uma feição nobre, o que não impede de no seu bojo se acommodarem as classes menos favorecidas.

O interior da Villa compõe-se de uma larga rua central, arborisada, calçada, illuminada, interceptada perpendicularmente por uma serie de travessas, tambem arborisadas.

Os grupos de habitações interiores, em geral em dois pavimentos, servem para alojar no andar terreo as familias, havendo no superior um longo corredor com quartos destinados aos solteiros. Há 145 casas para familias e 324 commodos para celibatarios.

Estes quartos são independentes, mas para vigial-os a todos, installa a Companhia em casa extremidade do corredor um casal, de modo a ser mantida a ordem e a decencia.

Tem além disto a Villa Ruy Barbosa uma lavanderia a vapor (que, diga-se, nunca foi utilisada, tal o espirito rotineiro da população, affeita a antigos habitos) e um forno de encineração de lixo destinado a destruir detrictos provenientes das casas e quartos da villa.

Dois armazens de seccos e molhados, um açougue, uma pharmacia, uma carvoaria, um restaurant, uma sapataria completam as dependencias da Villa, sendo por esse modo facil aos proprios moradores a acquisição dos generos mais necessarios.

Facilita tambem a companhia o uso de mobilias para os quartos dos solteiros, fornecendo os moveis mais precisos ao rapido estadio nocturno no aposento. Por uma cama, um colchão, um travesseiro, um lavatorio, uma mesa, uma cadeira e um cabide paga o locatario, em usofructo, mais 3$000 mensaes.

*

Das outras Villas a mais importante é a Arthur Sauer, que ainda tem corpos em dois pavimentos, predominando porém, como nas demais, o andar terreo assobradado. Na Villa Sauer as casas em dois pavimentos são pouco procuradas, já por serem mais caras, já por ser augmentada a labuta da mãi de familia em constantes subidas e descidas. Succede então que duas familias se cotisam, occupando uma os baixos e outra os altos da mesma casa.

Tem a Villa Sauer 89 casas e 22 commodos para rapazes, sendo que a Villa Sampaio tem 66 casas, a Senador Soares 60 e a Maxwell apenas 11.

Todas estas casas de todas as villas estão sempre occupadas, pois é enorme a sua procura, chegando a disputa a ponto de offerecer o novo pretendente luvas ao locatario antigo para que se mude. Havia, ao tomar eu as notas que vão servindo de alinhavo deste artigo, mais descriptivo que technico, apenas 38 quartos vasios na Villa Ruy Barbosa e me explicava a Administração este facto, attribuindo-o ao rigoroso cuidado que mantem não permittindo que exceda da cubação marcada no contracto o numero de moradores, o que habitualmente se observa nas ‘estalagens’ e mesmo nas ‘avenidas’, onde as camas se amontoam nos aposentos. Por isso, vê-se a Companhia obrigada a alugal-os mais baratamente ainda; pela tabella que abaixo darei, esses commodos deveriam custar ao morador 20$ mensaes ao passo que são locados a 14$ somente.

As casas que têm jardim, embora paguem por isso 10$000 a maior, são as mais procuradas, o que sobremodo lisongeia o gosto do nosso povo.

De accordo com a clausula III do contracto calcula-se para cada commodo e por pessoa, adulto ou menor, um volume de ar de 16 m3 o que está de accordo com a media das prescripções hygienistas.

Os alugueis mensaes variam do seguinte modo:

 

1 pessoa (até 31 m3) …………………………………….. 20$000
2  “ (32 a 47 m3) …………………………………….. 30$000
3 ou 4 “ (48 a 79 m3) …………………………………….. 35$000
5 ou 6 “ (80 a 111 m3) …………………………………….. 45$000
7 ou 8 “ (112 a 143 m3) …………………………………….. 50$000
9 ou 10 “ (144 a 163 m3) …………………………………….. 60$000

 

Pagam mais, para  remoção do lixo, 2$000 os solteiros e 5$000 as familias.

Quando succede ser maior a familia, a clausula VI permitte ligarem-se duas casas e serem ellas habitadas pelo mesmo locatario.

*

Os typos das habitações adoptadas obedecem a varias disposições internas, mantendo se sempre um directo recebimento de ar e luz do exterior. As casas são pois em todos os aposentos francamente arejadas e illuminadas.

Cada casa de familia tem a sua latrina, o seu banheiro, a sua cosinha, o seu quintal completamente independentes de modo a manter isolado o recato de cada lar, embora pela proximidade das habitações vejam-se obrigados os moradores a um saltuar convivio social. Os commodos para solteiros não têm naturalmente as suas dependencias isoladas; cada grupo de 12 quartos tem, porem, a sua latrina e o seu banheiro.

Tinha eu o maior desejo de reproduzir aqui alguns schemas das disposições internas, verdadeiramente felizes, das casas das villas da Saneamento. Infelizmente a Directoria, apezar das suas mil gentilezas, não me permitte isso, não desejando ver conhecido do grosso publico essas coisas que julga serem da sua exclusiva propriedade.

O caracteristico principal é ter cada casa latrina o mais possivel affastada do domicilio. Anda bem nisto, como em outros pontos, a Companhia; uma latrina, mesmo funccionando bem a rede dos esgottos (não é o caso do Rio) é um imminente perigo de infecção e o mais elementar conselho é affastal-a dos logares da permanencia constante dos moradores.

Ha typos os mais variados comprehendidos nas classes acima indicadas, desde a pequena casinha com dois commodos apenas (uma sala e um quarto) até a mais espaçosa, mais ampla, mais confortavel, com duas salas e tres quartos, tendo sempre, todas ellas – é bom repetir – cosinha, latrina e quintal; e entre esses dois typos extremos existe uma serie de outros em que varia quasi que sómente a disposição relativa dos aposentos, sendo ora dispostos deste ora daquelle modo, detalhes que só a comparação das plantas (o que me foi vedado reproduzir) poderia elucidar.

*

Está assim visto, de um modo geral, o que são as villas operarias da Companhia Saneamento. Outras emprezas, principalmente fabricas de tecidos, têm construido tambem para seus operarios. Esses emprehendimentos já são o sufficiente para dar a coragem precisa ao governo e aos particulares afim de tentarem novas construcções deste genero. São ellas pouco, porém, para a enorme, enormissima quantidade de cortiços que ainda hoje existem por toda a parte da cidade.

Seja este exemplo assás energico para soerguer as forças de combatentes combalidos, para dar energia e vigor aos outros que se aprestem para as pelejas em prol da hygiene, e seja elle principalmente bem vivo aos olhos do Poder Publico nesta epocha em que se trata por todos os modos, desde o rasgamento de novas ruas até a extincção dos charcos nos quintaes, de sanear a cidade. E elle será tanto mais vivo quanto se comparar a mortalidade nestas ‘villas’ com a das ‘estalagens’ e ‘cortiços’.

A febre amarella, a nossa mais terrivel inimiga contra a qual hoje se lucta por todos os modos, gastando-se milhares de milhares de contos de réis, não fez nos seis annos que vão de 1890 a 1896, de 5000 almas que tantas são as que habitam as villas da Companhia Saneamento.

*

Este eloquente exemplo não será bastante efficaz para indicar ao governo a verdadeira derrota a seguir, eliminando os perniciosos ‘cortiços’ e cooperando por outro lado para que se levantem elegantes e hygienicas muitas e muitas outras construcções populares?

Everardo Backheuser


Abaixo, as páginas da publicação encontradas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional:

Revista Renascença, Ed0015-1, Ano II, Maio de 1905, número 15, página 186.

Image 1 of 5

Revista Renascença, Ed0015-1, Ano II, Maio de 1905, número 15, página 186. Página em que aparece uma fotografia cercada de texto de um grande prédio de esquina em estilo antigo, com uma árvore à frente, e cuja fachada faz a curva na esquina. O prédio tem 3 andares e, à frente, na calçada e na rua, vêem-se transeuntes. Na legenda, lê-se "Villa Ruy Barbosa".

Referências:

[1] Renascença – revista mensal de letras, sciencias e artes. Rio de Janeiro, anno II, maio 1905, Num. 15, p. 185-189. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

Deixe um comentário