“Como fumam os garotos em Porto Alegre”

Além de imagens da cidade, na pesquisa em acervos também encontra-se reportagens – neste caso, uma reportagem fotográfica! – sobre sociabilidades e costumes urbanos do passado.

No caso desta edição do Jornal da Semana, encartado na revista A Máscara, Ano III, nº VI, de 10 de julho de 1920, o assunto é o hábito de fumar na infância, muito embora a reportagem focalize especificamente crianças do sexo masculino nas rua de Porto Alegre.

Desenhos da pesquisadora inspirados na leitura da reportagem “Como fumam os garotos em Porto Alegre”. Bico de pena e aquarela sobre papel, 2019.

O autor do texto tece, desde o seu início, um apanhado sobre como era visto o hábito de fumar no início da década de 1920. Para quem, como eu, trabalha com ficção sob a forma de quadrinhos, aprender sobre como esse hábito era encarado é me inteirar das formas de sociabilidade urbana da época que quero reconstruir na minha história. Ou seja, as formas de convívio e os costumes que tinham por palco a cidade.

Nesse sentido, é curioso observar como o autor oscila entre considerar o fumo como um “vício inocente” e um “veneno”, ressaltando que os médicos, à essa época, já alertavam quanto aos malefícios do tabagismo à saúde. Contudo, de acordo com ele, fumar era uma prática amplamente difundida na sociedade porto-alegrense, de alto a baixo as classes sociais, e marcadamente masculina. De fato, no seu relato, as mulheres só aparecem para confirmar que o cigarro faz parte do visual e dos hábitos masculinos[1] urbanos.

Hoje em dia é quase impensável permitir que crianças fumem, mas o autor aponta a curiosidade natural e o desafio aos pais como o grande motor das primeiras tragadas, ainda na infância.

Mesmo parecendo falar de infância em geral, os grandes protagonistas da reportagem são os meninos de rua. Em sua maioria negros, a julgar pelas fotos, eles estavam desde muito mais cedo expostos à vida pública e às pressões da sobrevivência, o que lhes colocava em contato muito mais direto com hábitos e sociabilidades adultas. Entre elas, o fumo.

Assim, quem percorresse as ruas da cidade à época veria que o fumar na infância – mais especificamente, entre os meninos de rua – era uma prática que fazia parte da paisagem urbana.

 Como fumam os garotos em Porto Alegre[2]

“É um vicio innocente, o do tabaco, dizem os tabagistas, apezar da constante campanha que os medicos lhe fazem, sustentando que o fumo intoxica, perturbando o funccionamento normal do organismo, compromettendo sériamente o systema nervoso e enumerando uma serie longa e fastidiosa de prejuizos á saúde. […] o que [sus]tentam os medicos, mas ninguem toma isso a serio. Faz mal á saúde? Tanto melhor… É mais um motivo para que o cigaro, o charuto e o cachimbo sejam avidamente procurados. Fumar já entrou para os nossos gestos mais inconscientes. Quantas vezes não nos surprehendemos de cigarro á bocca, sem saber como e quando elle ahi foi parar? Excita-nos quando nos sentimos incapazes; estimula-nos o pensamento quando nos invade um torpôr de ociosidade mental e acalma-nos nos momentos de contrariedades. É um amigo do homem, o cigarro… Os poetas fazem-lhe versos… as mulheres, na generalidade, acham-no elegante. Uma senhora já affirmou que faz parte integrante do aplomb masculino.

“Como fumam os garotos em Porto Alegre”, reportagem n’A Máscara, Ano III, nº VI, 10/07/1920, pp. 24-25. Jornal da Semana. Hemeroteca do Setor Rio Grande do Sul da Biblioteca Pública do Estado. Fotografia da pesquisadora.

Mas tem inimigos… que os devoram, como o dr. Fabio Barros[3], que escreveu uma chronica condemnando-o e largou a penna para accender um…

E generalisou-se por tal fórma, esse vicio innocente (um medico eminente e politico de alta evidencia chama-lhe habito…) que o encontramos em todas as camadas sociaes. Fuma o presidente da Republica e fuma o vendedor de jornaes…

“Póde-me emprestar o seu fogo, moço?” Detalhe da reportagem fotográfica “Como fumam os garotos em Porto Alegre”, fotógrafo desconhecido.

Adquire-se-o muito cedo, na infancia.

A delicia, o sabôr incomparavel dos primeiros cigarrinhos fumados ás escondidas! E como são inuteis todos os petelécos que por elles apanhamos! Adquire-se cedo, esse habito, e acompanha-nos, vida fóra…

(É interessante observar que os pais prohibem os filhos de fumar mas permittem-lhes que bebem, á mesa, vinhos e licôres… quando o alcoolismo é bem mais perigoso do que o tabagismo…)

“Os primeiros tentáculos do vício…” Detalhe da reportagem fotográfica “Como fumam os garotos em Porto Alegre”, fotógrafo desconhecido.

O fumo entre os garotos tem aspectos de um pittoresco a toda prova!… Damos, nesta pagina, alguns flagrantes obtidos pela nossa kodak, nas ruas desta Capital. Evidencia-se, ahi, a volupia com que os garotos sorve o lento veneno de Nicot, numa feliz inconsciencia…

É raro encontrar-se um garoto que não tenha uma ponta de cigarro pendurada á bocca.

Mario Pederneiras dizia que o assobio era um complemento do garoto. Nós podemos affirmar que o Poeta foi incompleto na sua observação. A ponta de cigarro é tão necessaria, nos labios do garoto, como o assobio. Quando não o tem mais, pede-a. Quando não a póde pedir, junta-a do chão.

“Como se mata um sabiá…” Detalhe da reportagem fotográfica “Como fumam os garotos em Porto Alegre”, fotógrafo desconhecido.

É o que elles chamam o sabiá. Entre as nossas gravuras o leitor poderá verificar como os garotos ‘matam um sabiá’. A nossa objectiva, num flagrande feliz, conseguiu surprehender um garoto no momento de juntar uma ponta, isto é, quando matava um sabiá.

Ás vezes juntam-se grupos de garotos, num banco da praça para uma fumarada collectiva… Fazem experiencias tirando fumo pelo nariz, tragando a fumaça e apostando quem traga mais…

Mal sabem elles, dirão os medicos, o mal que fazem á própria saúde…

Bem se importam elles com o que dizem os medicos… Fumar é uma grande volupia!”

Autor desconhecido

“Ás horas de menos movimento, os garotos se reúnem nas praças, para fumar. Não raro apostam nickeis em desafios que consistem em ver qual traga mais ou tira maior quantidade de fumaça pelo nariz…” Detalhe da reportagem fotográfica “Como fumam os garotos em Porto Alegre”, fotógrafo desconhecido.

Referências:

[1] Em outros textos de revistas ilustradas da mesma época ou até anterior, faz-se referência à coquette, jovem sedutora e despreocupada que rompe expectativas sociais e fuma. Na Revista do Globo da década de 1930, aparecem as propagandas do cigarro Libório, destinado às mulheres.

[2] A Máscara, Ano III, nº VI, 10/07/1920, pp. 24-25. Jornal da Semana. A grafia original foi mantida.

[3] Médico famoso e colaborador d’A Máscara. Verificar informações.

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