Além de imagens da cidade, na pesquisa em acervos também encontra-se reportagens – neste caso, uma reportagem fotográfica! – sobre sociabilidades e costumes urbanos do passado.
No caso desta edição do Jornal da Semana, encartado na revista A Máscara, Ano III, nº VI, de 10 de julho de 1920, o assunto é o hábito de fumar na infância, muito embora a reportagem focalize especificamente crianças do sexo masculino nas rua de Porto Alegre.
O autor do texto tece, desde o seu início, um apanhado sobre como era visto o hábito de fumar no início da década de 1920. Para quem, como eu, trabalha com ficção sob a forma de quadrinhos, aprender sobre como esse hábito era encarado é me inteirar das formas de sociabilidade urbana da época que quero reconstruir na minha história. Ou seja, as formas de convívio e os costumes que tinham por palco a cidade.
Nesse sentido, é curioso observar como o autor oscila entre considerar o fumo como um “vício inocente” e um “veneno”, ressaltando que os médicos, à essa época, já alertavam quanto aos malefícios do tabagismo à saúde. Contudo, de acordo com ele, fumar era uma prática amplamente difundida na sociedade porto-alegrense, de alto a baixo as classes sociais, e marcadamente masculina. De fato, no seu relato, as mulheres só aparecem para confirmar que o cigarro faz parte do visual e dos hábitos masculinos[1] urbanos.
Hoje em dia é quase impensável permitir que crianças fumem, mas o autor aponta a curiosidade natural e o desafio aos pais como o grande motor das primeiras tragadas, ainda na infância.
Mesmo parecendo falar de infância em geral, os grandes protagonistas da reportagem são os meninos de rua. Em sua maioria negros, a julgar pelas fotos, eles estavam desde muito mais cedo expostos à vida pública e às pressões da sobrevivência, o que lhes colocava em contato muito mais direto com hábitos e sociabilidades adultas. Entre elas, o fumo.
Assim, quem percorresse as ruas da cidade à época veria que o fumar na infância – mais especificamente, entre os meninos de rua – era uma prática que fazia parte da paisagem urbana.
Como fumam os garotos em Porto Alegre[2]
“É um vicio innocente, o do tabaco, dizem os tabagistas, apezar da constante campanha que os medicos lhe fazem, sustentando que o fumo intoxica, perturbando o funccionamento normal do organismo, compromettendo sériamente o systema nervoso e enumerando uma serie longa e fastidiosa de prejuizos á saúde. […] o que [sus]tentam os medicos, mas ninguem toma isso a serio. Faz mal á saúde? Tanto melhor… É mais um motivo para que o cigaro, o charuto e o cachimbo sejam avidamente procurados. Fumar já entrou para os nossos gestos mais inconscientes. Quantas vezes não nos surprehendemos de cigarro á bocca, sem saber como e quando elle ahi foi parar? Excita-nos quando nos sentimos incapazes; estimula-nos o pensamento quando nos invade um torpôr de ociosidade mental e acalma-nos nos momentos de contrariedades. É um amigo do homem, o cigarro… Os poetas fazem-lhe versos… as mulheres, na generalidade, acham-no elegante. Uma senhora já affirmou que faz parte integrante do aplomb masculino.
Mas tem inimigos… que os devoram, como o dr. Fabio Barros[3], que escreveu uma chronica condemnando-o e largou a penna para accender um…
E generalisou-se por tal fórma, esse vicio innocente (um medico eminente e politico de alta evidencia chama-lhe habito…) que o encontramos em todas as camadas sociaes. Fuma o presidente da Republica e fuma o vendedor de jornaes…
Adquire-se-o muito cedo, na infancia.
A delicia, o sabôr incomparavel dos primeiros cigarrinhos fumados ás escondidas! E como são inuteis todos os petelécos que por elles apanhamos! Adquire-se cedo, esse habito, e acompanha-nos, vida fóra…
(É interessante observar que os pais prohibem os filhos de fumar mas permittem-lhes que bebem, á mesa, vinhos e licôres… quando o alcoolismo é bem mais perigoso do que o tabagismo…)
O fumo entre os garotos tem aspectos de um pittoresco a toda prova!… Damos, nesta pagina, alguns flagrantes obtidos pela nossa kodak, nas ruas desta Capital. Evidencia-se, ahi, a volupia com que os garotos sorve o lento veneno de Nicot, numa feliz inconsciencia…
É raro encontrar-se um garoto que não tenha uma ponta de cigarro pendurada á bocca.
Mario Pederneiras dizia que o assobio era um complemento do garoto. Nós podemos affirmar que o Poeta foi incompleto na sua observação. A ponta de cigarro é tão necessaria, nos labios do garoto, como o assobio. Quando não o tem mais, pede-a. Quando não a póde pedir, junta-a do chão.
É o que elles chamam o sabiá. Entre as nossas gravuras o leitor poderá verificar como os garotos ‘matam um sabiá’. A nossa objectiva, num flagrande feliz, conseguiu surprehender um garoto no momento de juntar uma ponta, isto é, quando matava um sabiá.
Ás vezes juntam-se grupos de garotos, num banco da praça para uma fumarada collectiva… Fazem experiencias tirando fumo pelo nariz, tragando a fumaça e apostando quem traga mais…
Mal sabem elles, dirão os medicos, o mal que fazem á própria saúde…
Bem se importam elles com o que dizem os medicos… Fumar é uma grande volupia!”
Autor desconhecido
Referências:
[1] Em outros textos de revistas ilustradas da mesma época ou até anterior, faz-se referência à coquette, jovem sedutora e despreocupada que rompe expectativas sociais e fuma. Na Revista do Globo da década de 1930, aparecem as propagandas do cigarro Libório, destinado às mulheres.
[2] A Máscara, Ano III, nº VI, 10/07/1920, pp. 24-25. Jornal da Semana. A grafia original foi mantida.
[3] Médico famoso e colaborador d’A Máscara. Verificar informações.
Nos anos 80 eu vi essas crianças pela rua, até os anos 90 dava pra ver. Depois parou, agora vai voltar.
Pois é, infelizmente vão. :/