A sesta do operário

Uma das linhas de estudo da História que surgiu na segunda metade do século XX é a da história do quotidiano, em que se procura estudar os hábitos e práticas corriqueiras de uma sociedade num determinado momento. Quebrando tradições que desprezavam esses conhecimentos e focalizavam quase que unicamente os relatos dos grandes fatos políticos, militares e grandes personalidades, a história do quotidiano procura saber como era a vida das pessoas comuns, e nesta curta matéria da revista Mascara temos algumas pistas privilegiadas da rotina urbana na Porto Alegre das primeiras décadas do século XX.

Estamos falando sobre o hábito da sesta, ou da famosa soneca após a refeição do meio-dia. Comum em países cuja estação quente induz a uma natural sonolência, a sesta é mal vista pela lógica capitalista de produtividade máxima que permeia as relações entre as pessoas, especialmente nos últimos tempos. Sob o tradicional adágio “tempo é dinheiro”, dormir em pleno dia é um ato impensável. Hoje, empresas que buscam mostrar-se “inovadoras” equipam-se com espaços para relaxamento e power naps, visando, naturalmente, aumentar a produtividade de seus empregados. Tudo para justificar a reinstauração de um hábito considerado tradicional há quase 100 anos!

No Brasil, após quase quatro séculos de uma associação estreita entre trabalho e escravidão, a transição para o trabalho livre e remunerado não se fazia de forma fácil. Os grandes contingentes de ex-escravos nas cidades levava a que as forças policiais fossem usadas para reprimir a “vadiagem”, que chegou a configurar crime na época. Isso parece transparecer no trecho em que o cronista se refere à interrupção do sono em espaço público pela mão de um policial.

Contudo, ao menos para o cronista, o operário braçal trabalhador merecia esse descanso, conforme lê-se:

A sesta do operário[1]

“Com os primeiros calores que se fazem sentir, a hora da sésta passa a reconquistar os fóros de sagrada que periodicamente tem. E si nas casas de familia a ha quem a observe religiosamente, na rua – isto é, ao ar livre – essa pratica toma um aspecto extraordinariamente pittoresca.

Operário dormindo. Fotógrafo desconhecido. Mascara, 02/10/1920. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Ha ociosos que se sentam num banco de praça, á sombra agradavel de um velho plátano, e, cabeça descansada sobre o peito, resomnam e roncam beatificamente até que a mão importuna do policial o chame á estupida realidade.

Há os que dormem nos bondes, agitados pelos solavancos e obrigados a despertar a cada instante para dar passagem.

Há os que vão para os arrabaldes exclusivamente para praticar essa habito que se impõe á chegada de cada verão.

Mas, a sésta mais pittoresca e mais justificavel é, sem duvida, a do operario.


Operário dormindo com o chapéu na barriga. Fotógrafo desconhecido. Mascara, 02/10/1920. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Depois de um trabalho violento as 8 da manhã até ás 12 – hora em que atiram para o estomago um prato pesado e indigesto de feijão com farinha – o operario tem a necessidade inadiavel de dormir uma ‘somnéca’. Não só os musculos cansados a reclamam como o trabalho feroz e titanico do estomago a exige.

E é de vêr-se o somno profundo do operario á essa hora! Dobrado o paletot e posto debaixo da cabeça á guisa de travesseiro, extendido nas taboas do andaime ou ao pé da obra, sonha elle com a Sociedade Nova e a Paz Universal, até que a rude voz do trabalho o chame á brutalidade da lucta pelo pão.

Dormir… Nessas horas tem elle resolvido o problema da Felicidade… Dorme e esquece a miseria, anesthesía o soffrimento.

Bemdita sésta!”

São essas informações de pesquisa, específicas, que tornam o processo criativo de uma história em quadrinhos tão rico e prazeiroso.

Referências:

Revista Mascara, 02/10/1920, p. 20. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.


[1] Autor desconhecido. A grafia original foi mantida.

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