“Um antro no coração da cidade”

Nas primeiras décadas do século XX, Porto Alegre era uma cidade bem menor do que é hoje. Assim, mesmo dentro do seu centro histórico, as zonas de miséria e criminalidade, como os becos, eram vizinhas diretas das zonas de respeitáveis negócios e ricas residências familiares.

Naturalmente, esse convívio “forçado”, desde a imprensa do século XIX, era tema de longas reportagens denunciando a existência de tais espaços de degradação e imoralidade dentro da cidade e clamando o poder público a tomar providências repressivas. Nesta interessantíssima reportagem do Correio do Povo de 10 de janeiro de 1929, tem-se o relato da incursão do repórter, acompanhado de um “cicerone” que deixou a vida criminosa, em uma obra da Prefeitura que, inacabada, servia de esconderijo aos gatunos do centro:

Em pleno coração da cidade, a dois passos da Alfandega, Porto Alegre mantem um valhacouto[1] de malandros e malfeitores[2]

Relembrando uma exhaustiva e sensacional reportagem do CORREIO DO POVOpor occasião do mais emocionante crime occorrido na capital

No edificio eternamente em construcção[3] na Alfandega, os gatunos instituiram o seu ‘albergue nocturno’, onde tambem sesteiam á hora da canicula

Correio do Povo, 10/01/1929, p. 7. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho de Porto Alegre. Consultado em 30/11/2018, fotografia da pesquisadora.

Quando occorreu, nesta capital, o repugnante delicto do morro do Menino Deus, em que perderam a vida, depois de selvagemmente seviciadas, duas innocentes crianças, o ‘Correio do Povo’, como devem estar lembrados os nossos leitores, desenvolveu uma exhaustiva reportagem afimde descobrir o barbaro e sadico massacrador das infelizes crianças, até hoje, infelizmente ignorado.

Nessa occasião, a nossa reportagem, […] infatigavelmente, percorreu todos os recantos da cidade onde se pudesse encontrar, porventura, vestigio do repellente bandido.

Depois de uma busca rigorosa no Morro do Menino Deus, diligencia feita paralellamente a da policia, o ‘Correio do Povo’ esteve até no edifício eternamente em construcção a Alfandega, que a nossa reportagem sabia ser

Um antro de malfeitores

De que então conseguimos apurar nesse singularíssimo ‘paraíso de ladrões’, demos circunstranciado relato aos nossos leitores, que por certo não esqueceram os esforços, a solicitude indormida da nossa reportagem.

Agora, com o nosso inquerito nos ‘bas fonds’[4] da cidade, aquella turma perigosa volta a preoccupar a nossa reportagem.

É que

Desde aquelle tempo

[…] edificio eternamente em com[st]rucção da Alfandega é um [va]lhacouto de gatunos e de malandros.

O antigo ‘achacador’, que nos tem servido de ‘cicerone’ neste curioso inquerito, fez questão de mostrar-nos o antro.

E embora lhe houvessemos feito sentir que o conheciamos desde os dias tragicos do crime do morro do Menino Deus, elle insistiu:

– Mas é preciso que o sr. vá ver novamente aquelle antro. Ali, de noite, se reune de tudo. Desde o ‘descuidista’ até o ‘escruncha’. É um horror!

– E você, nunca dormiu ali?

– Infelizmente já. Mais de uma vez. E quando me lembro disso até fico horririsado!

Imagine o sr. um antro desse no coração da cidade, aos fundos da nossa praça principal!


Foto de satélite (Google Maps, 29/07/2019) da Praça da Alfândega (área verde em baixo) com a antiga sede da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul destacada em amarelo. Edição da pesquisadora.
O imponente prédio da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul hoje, no site da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Fotógrafo desconhecido.

É muito provável que a construção de que fala a reportagem se trate da antiga sede da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul, situada a norte da Praça da Alfândega. Segundo a seção Histórico do site do órgão,

“Quase 30 anos se passaram para que fosse iniciada a construção do prédio-sede da Secretaria, o mesmo ocupado até hoje, em estilo neoclássico. Porém, as edificações gêmeas sofreram mudanças no projeto inicial, de 1913, as quais podem ser comprovadas ao se observar fotografias e desenhos antigos. Em 1919, quando o prédio da Avenida Mauá foi iniciado, o projeto contemplava uma unidade de 2.200 m2, divididos em dois andares. Abrigaria a Administração do Porto, a Mesa de Rendas, a Junta Comercial e a Repartição de Higiene.

De 1920 a 1927, as obras foram paralisadas duas vezes por problemas financeiros. Houve alterações no projeto: pisos de cimento armado, ao invés de madeira, foram acrescentados pórticos laterais, colunas, escadaria de granito e mais um andar para a Secretaria da Fazenda, a Mesa de Rendas da Capital, o Tesouro do Estado e o Banco do Estado. Em 1934, para ampliar o espaço físico do Banco do Estado, foram construídos mais dois andares. Foram retirados a cúpula e os relevos artísticos. Os dois prédios foram inaugurados em 1935.”


No terrível antro

Não quizemos contrariar o nosso ‘cicerone’. Assim acquiescemos ao seu convite e com elle nos dirigimos ao edificio eternamente em construcção da Alfandega, na formosa avenida que liga a praça Senador Florencio ao cáes.

Ali chegados, na face oeste, o nosso ‘cicerone’ parou. Era uma das futuras portas do predio eternamente em construcção. Essa futura entrada do futuro edificio, porém, estava em parte obstruida por taboas, como se póde vêr pelo cliché que publicamos nesta reportagem.

A entrada do valhacouto dos malandros, no edificio eternamente em construcção, da Alfandega. Detalhe da reportagem, fotógrafo desconhecido.

Esgueirando-nos, conseguimos entrar. Um cheiro bastante desagradavel. Meia sombra. O chão immundo.

Como vacillassemos, o nosso ‘cicerone’ interpellou-nos:

– Está como medo?

– Não é bem medo…

– É nojo, não é?

– Talvez…

– Isto não é nada… Si o sr. visse as immundicies da cidade!

Tomamos a direita. Roupas velhas, trapos immundos, pelo chão. Penetramos numa das

Alcovas dos ‘gatos’

Uma cama na ‘alcova’ do edificio eternamente em construcção da Alfandega. Detalhe da reportagem, fotógrafo desconhecido.

Os malandros erigiram em alcova uma das futuras salas do futuro edificio da Alfandega eternamente em construcção.

Algumas taboas erguidas sobre tijollos, são os leitos.

Os travesseios são grandes embrulhos de trapos.

Aqui e ali, no chão, signaes indiscutiveis de vida. Até pingos de spermaceti[5].

Um bafio horrível.

Em outras salas, o mesmo espectaculo.

Culto a Morpheu

 – É aqui que elles dormem – esclareceu-nos o antigo ‘malandro’.

– Sempre?

– Não. Quando não estão com a ‘Grana’. Porque, como já lhe disse, os ‘gatos’ ‘afanam’ e todo o resultado é p’ra farra. Ahi sim. Não há parente pobre. Um tem duzentos mil réis? Passa um pobre? Pensa que o gato dá um nickel de duzentos reis? Pois sim! Dá logo uma ‘pelle’ de vinte!

– Tambem… – observamos – dinheiros ganho facilmente…

– Facilmente diz o senhor! Só o sobressalto em que a gente vive! Então é brincadeira? Todo mundo que chega perto da gente, a gente pensa que é um ‘tira’. A gente está sempre com a ‘canna’ na cabeça… Hoje, eu sei que dinheiro facilmente é o que se ganha honestamente.

– Então como se explica a generosidade dos ‘gatos’?

– É que elles são farristas… gastam tudo o que ganham…

– Bella maneira de ganhar!

– Gastam tudo, tudo com mulheres…

Alto

O ambiente, porém, não convidava a uma permanencia longa.

Comprehendendo o nosso desagrado, o antigo ‘gato’ poz-se em marcha.

Cá fóra no ar puro que vinha do Guahyba e da praça, respiramos.

Olhamos ainda para o edificio eternamente em construcção. Bello destino!

Antro de malfeitores!

Valhacouto de malandros!

Um edificio que faz tanta falta a Porto Alegre.

O nosso ‘cicerone’ convidou:

– Bem. Então, agora, vamos áquelle outro antro…

– Não! Por hoje basta! Façamos alto!

– Não quer, ao menos, esperar?

– Esperar o que?

– Ora, daqui a pouco elles começam a chegar. Entram p’ra ahi e vão dormir…

– Dormir de dia? Elles então ousam vir aqui á luz do sol?

– Ué! Sesteiam todos os dias…

– E a policia não sabe?

– Que é que póde ella fazer? Ella só póde agir com o ‘fraga’. E quando elles veem para cá e não teem ‘grana’… Quer esperar?

– Não. Façamos alto, por hoje.”

Autor desconhecido

Referências:

Correio do Povo, 10/01/1929, p. 7. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho de Porto Alegre. Consultado em 30/11/2018.

Seção Histórico do site da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul: https://fazenda.rs.gov.br/conteudo/999/historico . Consultado em 29/07/2019.


[1] Refúgio, esconderijo.

[2] A grafia original foi mantida.

[3] É muito provável que se trate da antiga sede da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul, situado atrás do atual Memorial do Rio Grande do Sul, à Praça da Alfândega.

[4] Segundo o dicionário Larousse, “meio em que vive uma população miserável e marginal” (original: “Milieu où vit une population misérable et marginale”). Conforme https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/bas-fonds/8195 , consultado em 29/07/2019.

[5] Cera feita a partir da gordura extraída de baleia, e usada em velas e lampiões.

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