Revista do Globo, ano I, nº 005, p016, detalhe.

“Porto Alegre colonial vai desaparecendo aos poucos”

Há quase cem anos, Porto Alegre já se modernizava e já ambicionava mudar totalmente a sua paisagem. Contudo, ainda continha nela exemplares da arquitetura colonial portuguesa, traço em comum que teve com tantas outras cidades brasileiras de norte a sul.

O testemunho do cronista Celestino Jordão, que escreve nesta edição de 1929 da Revista do Globo, dá a entender que a ânsia por modernização – tão exigida pela imprensa e tão diligentemente buscada pela municipalidade  – não era um consenso. Havia sensibilidades que, como a dele, viam com tristeza o desaparecimento da paisagem colonial da cidade, aqui representada especialmente pelos prédios revestidos de azulejos.

Afinal, quem não encontra conforto nas paisagens familiares? Ou talvez o cronista estivesse também saudoso de um tempo passado, vivido mais lentamente, que ficara simbolizado naqueles azulejos?…

Aspectos urbanos[1]

Porto Alegre colonial vai desaparecendo aos poucos.

Quer dizer: a velha Porto Alegre, a Porto Alegre dos nossos paes, a Porto Alegre que – infelizmente! – muitos de nós alcançaram, cede passo, gradativamente, a uma cidade moderna, a uma cidade americana, igual a todas as outras cidades.

Porto Alegre, cidade internacional…

Evidentemente, dentro da febre de renovação por que passa, nesse momento de vertigem, a face da terra, a evolução da Cidade só nos póde encher de orgulho.

Entretanto, não é sem uma ponta de melancolia que a gente vê desapparecer, no […] irresistivel, a Porto Alegre tradicional que há apenas vinte annos assemelhava a todas as cidades coloniaes do Brasil, como hoje se assemelha a todas as cidades cosmopolitas da America.

Hontem…

Hontem, os beiraes lacrimosos chorando sobre as calçadas, nos dias frios e chuvosos de inverno, os longos fios prateados das goteiras.

Hontem, os frades de pedra, as janellas de guilhotina, os casarões sombrios, dentro dos quaes, os velhos habitos patriarchaes dos portugueses dos Açores se ajustavam admiravelmente.

Hontem, uma só língua – a nossa.

Hoje

Hoje, a Cidade – Babel ascende em arranha-céus (de seis andares…), extende, como um polvo fantastico, os seus tentaculos (a Cidade Tentacular) em todas as latitudes. E, em logar da antiga architectura quasi sombria, que denunciava a vida sabia dos nossos antepassados, que se accomodavam logo depois do chá das nove, surgem as construcções em linhas rectas, esfusiadas, reveladoras do espirito vertiginoso dos dias que correm.

As duas cidades

Quem reconhecerá, na Porto Alegre de hoje a Porto Alegre de há vinte annos?

Quem, tendo se afastado da Cidade durante algum tempo, e a ella tornando agora, será capaz de affirmar que é a mesma Porto Alegre de outros tempos?

Entretanto…

Ha, entretanto, espalhados na Cidade, varios documentos que reconstituem a cidade de hontem.

Ainda ha pouco, referimo-nos ao já hoje histórico valor de D. Diogo de Souza, nosso primeiro Governador.

Hoje estampamos, nestas paginas, as photographias de algumas casas antigas da Cidade, cuja frente é revestida de azulejo.

Documento vivo e não devidamente apreciado daquelles tempos, esses predios, embora desfigurados pelas reformas, são ainda uma encantadora recordação da nossa Porto Alegre tradicional, que não podemos vêr sem um sorriso de ternura e de melancolica saudade.

Entretanto, quantas pessoas, em Porto Alegre, teem sabido ‘vêr’ essa riqueza prodigamente espalhada pela cidade pelos antigos habitantes de Porto Alegre?

– A poesia do aranha – céo é empolgante – dizia-nos, não há muito um conhecido antiquario português que aqui esteve com uma soberba collecção de tapetes da Persia, do Beluchstau, da Grecia. Mas não é possivel deixar de sensibilizar-se diante destas fachadas, onde a arte portuguesa é tão viva. Os sr. não imaginam siquer o que possuem. Vi frentes de azulejos já mutiladas pela ancia do moderno.

E depois de uma pausa:

– O moderno está muito bem. É muito curioso. Dá caracter á cidade. Mas… o colonial tambem não ambienta tão singularmente certos aspectos urbanos?

Que elle era sincero naquillo que dizia, basta saber que mandou photographar as frentes que damos nestas paginas e pagou um desenhista para reproduzir, a aquarella, com a maior fidelidade, os diversos typos de azulejos empregados.

Durante quanto tempo estiveram essas frentes de azulejos esquecidas?

Quantas vezes, em transeunte menos prudente terá desejado se substituissem aquelles rectangulos da ceramica portuguesa pelo reboco do cimento armado? Ah! Porto Alegre! Minha velha Porto Alegre de hontem!”

Celestino Jordão.

Referências:

[1] Revista do Globo, ano 1, n° 5, 02/03/1929. p. 16-17. A grafia original foi mantida.

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