"Os melhoramentos da Força e Luz". Correio do Povo, 06/05/1926. Hemeroteca do MCSHJC. Provável desenho de Fancis Pelichek.

Os supplicios do porto-alegrense

Com a modernização e crescimento das cidades brasileiras, o transporte público sempre foi um problema recorrente. Como fazer para levar um número crescente de trabalhadores e cidadãos de suas casas para seus trabalhos, e vice- versa, com comodidade e, claro, tarifas razoáveis, em cidades que se estendem cada vez mais no território, tornando os trajetos cada vez mais longos?

Seja por bondes ou, mais recentemente, por ônibus e lotações, o deslocamento dentro da cidade permanece até hoje um desafio, e há quase cem anos não era diferente. O autor deste artigo no jornal Novidades, de 29/05/1923, lamenta o incômodo que é pegar um bonde em Porto Alegre: superlotados, perigosos, e com tarifas caras. Isso, quando a cidade recém atingia 200 mil habitantes…

"Os melhoramentos da Força e Luz". Correio do Povo, 06/05/1926. Hemeroteca do MCSHJC. Provável desenho de Fancis Pelichek.
“Os melhoramentos da Força e Luz”. Correio do Povo, 06/05/1926. Hemeroteca do MCSHJC. Provável desenho de Fancis Pelichek.

“Os supplicios do porto-alegrense[1]

Um delles é, positivamente, a escassez dos meios de transporte

Muitos são os supplicios que hoje se defrontam ao porto-alegrense. Abstrahindo já tudo quanto se relaciona com a caresta da vida, nos seus crueis effeitos e nas suas terriveis perspectivas, vemos outros impecilhos que se antepõem á actividade quotidiana, como tropeços irritantes a lhe tornarem ainda mais arreliada a vida difficil de hoje.

Temos assim, no terreno da exploração, o famigerado agio dos 2% sobre os trocos, e de que nos temos occupado, relatando-lhe minucias e aspectos que seriam mais ou menos toleraveis, apezar de tudo, se elles não revelassem a exploração revoltante que os determina. No terreno da commodidade – se é que ás classes mais modestas esse luxo lhes é permittido, – no terreno da commodidade temos os bondes da Companhia Força e Luz, com todas as suas despoticas defficiencias e todos os seus pittorescos aspectos que, no fim das contas, redundam sempre em novos entraves à vida laboriosa que diariamente agita a cidade.

Nos bons tempos que lá vão…

Antigamente, quando a nossa população não ia muito acima da casa dos cem mil, podia-se regressar aos penates, depois da luta de todo o dia, com alguma commodidade. Os bondes eram já um pequeno supplicio, com as suas demoras enfadonhas e as suas constantes, successivas infracções do horario da Companhia. Mas sempre, quando affinal apparecia o vehiculo desejado, o cidadão, sem grande esforço, conseguia aboletar-se num banco, accender seu cigarrinho de palha e meditar serenamente sobre o ‘bicho’ que tinha dado. O bonde era até mesmo um logar propicio ás gymnasticas espirituaes…

Na vinda para a cidade, o honesto pae de familia organisava o seu programma, recapitulava as encomendas que a esposa lhe fizéra e decidia – isso já quase ao saltar – se era o cachorro ou o porco que ia merecer, na hora nervosa da ‘fésinha’, a preferencia singela dos seus magros mil réis. E na volta para casa, que de pensamentos não o assaltavam! A recordação dos factos passados durante o dia – o ‘palpite’ infeliz, a conversa na repartição, os dois dedos de prosa no café, o ultimo ‘potin’, o ultimo telegramma do exterior, o annuncio de uma nova marca de bom vinho, ou de um novo rotulo de cerveja, etc., etc. – tudo lhe perpassava pela mente, dourando-a com a ventura, ephemera mas simples, de um bem-estar honradamente ganho.

Ás vezes ia um amigo ao seu lado. E se esse amigo não era ‘mordedor’, que de encantadora uma palestra inocente sobre os feios peccados dos outros! E se, ao envez do amigo amavel, que até pagava os 200 réis da passagem, provocando-lhe um – ‘ora, seu Fulano, muito obrigado; não precisa incommodar-se: entre nós não há cerimonia! – e se, ao envez do ‘mordedor’ indesejavel, era uma linda criaturinha, viuva sempre no caso, que o distrahia com os seus olhares brejeiros e o perturbava com o seu dôce e inebriante perfume? Ah! Então, o pae de familia chegava em casa radiante, transbordante de felicidade. E jantava com appetite, e lia o seu jornal com interesse, e discutia a guerra com paixão, e jogava o vispora com enthusiasmo , – afinal, dormia tranquillo, sobre o travesseiro camarada e os colchões discretos, o somno abençoado dos justos…

Nos tempos ‘appertados’ de hoje…

Mas esse tempo já passou. Adeus, passeios deliciosos de bondes! O bonde é, hoje, um longo e torturante supplicio, um dos maiores do porto-alegrense. Muito embora a população duplicasse quase –  ultimo censo dá a cifra respeitavel de quasi duzentos mil – e os arrabaldes mais longinquos se tivessem desenvolvido extraordinariamente, nem por isso a Força e Luz augmentou proporcionalmente o numero de seus vehiculos.

Por que a ‘Força e Luz’ não providencia, remediando o mal?

Augmentou um ou outro carro electrico, um ou outro comboio. Allega a Companhia que só em determinadas horas do dia – de manhã, ao meio-dia e à tardinha – os bondes se enchem, permanecendo, durante o resto do dia e da noite, quasi vazios. Mas isso é perfeitamente natural! Ou quer a Força e Luz que a população toda, num movimento permanente, não saia nunca de dentro de seus vehiculos? A anomalia é de facil remoção: ‘primo’, a Companhia deve augmentar os bondes e pô-los todos a trafegar nas horas de maior movimento; ‘secondo’, nas horas da vasão, os bondes são recolhidos á estação geral, e assim, se não dérem resultado, prejuízo também não poderão dar, observadas, claro está, uma boa organisação do pessoal.

Qual se vê, isto é perfeitamente rudimentar e digno daquelle ‘sabido’ conselheiro Accacio… Mas a Força e Luz não o entende, ou não quer entender assim. Dahi essa balburdia na tomada dos bondes, em certas horas nos pontos centrais da […] difficuldade com que se lucta para obter-se um transporte commodo. Dahi os atropellos, a confusão, os vexames, os protestos e até os conflictos que occasionam essa inexplicavel, essa absurda anomalia.

E dahi, sobretudo, essa instituição, curiosa mas deploravel pelos perigos a que expõe o publico, dos ‘pingentes’, – isto é: dos cidadãos corajosos que viajam nos estribos dos carros, à falta de logares nos mesmos.

Passou, portanto, a época em que andar de bonde era um prazer, um fino e espiritual prazer. Porque hoje mudou-se esse interessante aspecto das coisas. Já não se póde ler, nem fumar, nem conversar, nem ‘flirtar’ nos bondes. Só o martyrio para conseguir-se uma vaga no estribo ensombra o pensamento mais luminoso, mais claro, mais cheio de sol da alegria.

A Força e Luz bem poderia fazer uma pequena despeza, comprando bondes e mais bondes, que de bondes – e não tanto de augmento no preço das passagens – precisa o porto-alegrense a quem o Destino não presenteou um automovel…”

Autoria desconhecida.

Novidades, Ed0004, 29/05/1923, s/p. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Novidades, Ed0004, 29/05/1923, s/p. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Referências:

[1] Novidades, Ed0004, 29/05/1923, s/p. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

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