Imagens do trabalho na década de 1920

A reportagem “Greve dos operários fabris attinge a 1.600 o número de trabalhadores”[1], encontrada no Correio do Povo de 09/03/1929, deixa ver um pouco da realidade dos trabalhadores de Porto Alegre na década de 1920.

Apesar de não conseguir tê-la captado na íntegra, a maior parte, aqui transcrita, fala de rotinas duríssimas de trabalho e da mediação entre operários grevistas e patrões através do então secretário do Interior, Oswaldo Aranha.

A história do trabalho no Brasil é marcada pela escravidão, regime em que a exploração brutal dos trabalhadores, muitas vezes até a morte, era da ordem do dia. A sua abolição, em 1888, longe de garantir na prática um regime de direitos mínimos para os trabalhadores – direito ao descanso, ao salário adequado, à carga de trabalho suportável -, engendrou outras formas de exploração.

Estas, características trabalho fabril e urbano, já de há muito eram combatidas na Europa, onde se iniciou o processo de industrialização. Lá, os trabalhadores organizavam-se em sindicatos, e, com a imigração de muitos deles, os movimentos grevistas também começaram a aparecer nas cidades brasileiras no começo do século XX. Porto Alegre, por sinal, teve sua primeira greve em 1919, conforme testemunho da revista A Máscara:

“A greve – um aspecto da rua dos Andradas durante os dias em que esteve paralysado o serviço de bondes”. Revista A Máscara, 30/08/1919. Fotógrafo desconhecido. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Na reportagem do Correio do Povo, dez anos depois, é interessante notar a demanda por jornadas de oito horas, por exemplo. No início do século XX, o Brasil ainda não tinha uma regulamentação das leis que regiam o trabalho, coisa que só viria com a primeira presidência de Getúlio Vargas, na década de 1930. Assim, não era incomum que muitos trabalhadores pobres se vissem obrigados a enfrentar jornadas de 10, 12 ou mesmo 14 horas de trabalho, com folgas quiçá aos domingos.

A conquista da jornada de 8 horas deu-se depois de muitos conflitos violentos com as classes patronais. Na reportagem, é interessante notar que o então Secretário do Interior elogia

“[…] o meio pacífico e conciliador de que os operarios lançaram mão para conseguir o almejado […]”

O que denota o quanto a violência que poderia ser usada para obtenção das exigências dos operários era esperada por parte das autoridades. Por sua vez, os proprietários de fábricas e estebelecimentos comerciais não hesitavam em acionar a polícia para reprimir violentamente qualquer sinal de insurgência por parte dos trabalhadores.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a banalidade do trabalho infantil. Nos trechos transcritos, o repórter em nenhum momento acha digno de menção a quantidade de crianças trabalhando nas fábricas de tecidos. Casualmente, os pequenos operários aparecem posando para uma foto que ilustra a reportagem.

Outro aspecto interessante, especialmente no quesito urbanístico, é a imagem da fileira de casas operárias que a reportagem traz fotografada. Vêem-se o arranjo típico de moradas pobres da época: casas térreas, de porta e janela, numa fiada que pode ser ao longo de uma rua ou no interior de um terreno, configurando um cortiço. Mesmo decoradas com cornijas e compoteiras, os seus tamanhos diminutos acabam revelando a que público se destinam.

“1 – grupo de operarios de uma fabrica em actividade, ao largar o serviço. 2 – Menores empregados em estabelecimentos fabris. 3 – Um correr de casas habitadas por operários.” Correio do Povo, 09/03/1929, p. 8. Fotógrafo desconhecido. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

Abaixo, então, uma parte da reportagem transcrita:

“Greve dos operários fabris attinge a 1.600 o número de trabalhadores[2]

O movimento grevista nas fábricas de tecidos e padarias

Nas fabricas Renner, Rio Guahyba e Fiação e Tecidos os trabalhos paralysaram, hontem, completamente

O que conseguimos saber do actual movimento, desde a sua origem até a explosão da greve

Pretendem os paredistas augmento de salarios e as 8 horas de trabalho em todas as fabricas

Em consequencia da resposta dos proprietarios de Padarias ao Syndicato Padeiral, os associados dessa agremiação declararam-se, hontem, também em greve

Foi recebida com a maior estranheza a noticia da gréve operaria, declarada, ante-hontem, em tres importantes estabelecimentos fabris desta capital.

[…] pela harmonia, pelo manos apparente, que voltára a reinar entre patrões e operarios, desde que estes se conformaram com a solução proposta pelo governo no Estado, quando da parede [sic] intentada, ultimamente, para obtenção das […]

Colhidos, também, por essa nova, não pudemos dar, hontem, senão uma synthese de movimento  actual, que surgiu ex-abrupto, reservando-nos, hoje, entretanto, para nos determos, com detalhes mais abundantes, na origem e fins dessa questão.

Com esse intuito, desenvolvemos grande actividade, procurando syndicar tundo quanto se relacionasse á gréve.

Esse nosso trabalho, porém, não se restringiu só ás attitudes dos operarios fabris.

Ampliou-se muito mais, porque a classe dos padeiros, coincidentemente, declarou-se em gréve, também, hontem, pelos motivos que adiante exporemos.

Dizemos coincidentemente, em vista do Syndicato Padeiral ter declarado ao nosso representante que o gesto dos seus associados, abandonano, quase ao mesmo que os operarios fabris, o trabalho, nada tem, por emquanto, de solidario com a iniciativa destes últimos.

Dado esse facto, abaixo, passamos a narrar, em duas partes, os acontecimentos occorridos no seio daquellas duas classes laboriosas.

A gréve dos operarios fabris

Em nossas indagações, apuramos que os operarios das fabricas de tecidos A. J. Renner e Cia, Fiação e Tecidos e Rio Guahyba, de commum accordo, há cerca de mais de um mês, vinham, silenciosamente, entrando em combinações para conseguirem de seus patrões, com o auxilio do governo do Estado, augmento de salarios e outras vantagens que julgavam opportunas.

Ideando isso, esperaram um momento azado para fazel-o, afim de não verem fracassadas as suas intenções.

Os operarios, que eram consultados, naturalmente adheriam áquelle iniciativa e, assim, sem discordancias, foi se formando uma grande corrente operaria, prompta a pôr em pratica o plano concertado.

A primeira tentativa

Firme no seu proposito, um grupo de operarios da Fabrica Renner, onde se gerou a idéa desse movimento, há cerca de duas semanas mais ou menos, dirigiu-se ao dr. Oswaldo Aranha, secretario do Interior e, depois de explicar as pretensões de sua classe, pediu que o governo do Estado, por intermedio daquelle seu auxiliar, interviesse junto aos industriaes para conseguir o que elles pleiteavam.

Demonstrando a maior sollicitude e boa vontade, o dr. Oswaldo Aranha, depois de louvar o meio pacífico e conciliador de que os operarios lançaram mão para conseguir o almejado, promptificou-se a fazer tudo que estivesse em seu alcance em benefício dessa numerosa classe, assegurando-lhes que, immediatamente, trataris do assumpto.

Como a reaffirmar as suas intenções, o secretario do Interior adiantou aos interessados que voltassem a procural-o ante-hontem, afim de se inteirarem do resultados de sua acção.

Realisando o promettido

Cumprindo a sua palavra, o dr. Oswaldo Aranha approximou-se dos industriaes, começando as demarches para a solução do pretendido pelos operarios.

Os patrões, em face dessa intervenção, trocaram diversas idéas sobre o assumpto com o secretario do Interior, expondo-lhe minuciosamente o seu ponto de vista.

Entre outras coisas, segundo conseguimos saber, os industriaes declaram, em conferencia com o dr. Oswaldo Aranha, que não achavam sem fundamento o pedido dos operarios, mas necessitavam de um praso para se pronunciar, afim de conciliar os seus interesses com os dos seus empregados. Assim, promettiam fazer um estudo da situação das industrias, vendo, affinal, o que era possivel deliberar.

Teriam ponderado, ainda, os patrões, ao dr. Oswaldo Aranha, que nunca se desinteressavam pela melhoria dos salarios de seus operarios. Se isto ainda estava demorando, era porque a industria de tecidos, agora, é que ia se refazendo do abalo que lhe causária a crise de há dois annos atraz.

Desse modo, eram de opinião que se attendesse aos interessados, debaixo de muita meditação, mesmo porque, naturalmente, o augmento dos salarios havia de trazer como consequencia qualquer alta no preço dos tecidos.

Foram estes os resultados dos primeiros passos do dr. Oswaldo Aranha nesta questão.

A explosão do movimento grevista

Ante-hontem, justamente o dia convencionado para os operarios voltarem ao secretario do Interior, para receberem a resposta das suas demarches junto aos industriaes, os tecelões da Fabrica Renner declararam a gréve, às 15 ½ horas, abandonando, em peso, o trabalho, como houvesse uma prévia combinação.

Logo a seguir, os tecelões das Fabrias Rio Guahyba e Fiação e Tecidos adheriam aos gesto dos seus collegas da Renner, augmentando, assim, o numero de paredistas.

Não obstante essa resolução, os operarios da Renner foram procurar o dr. Oswaldo Aranha, como estava combinado, e, antes de receberem qualquer resposta, scientificaram-no de que tinha estalado a gréve naquelles estabelecimentos.

Recebendo essa noticia desagradavelmente, o secretario do Interior achou inopportuna a attitude dos tecelões, declarando-lhes que, por esse motivo, se via obrigado a não mais tratar do assumpto, como secretario de Estado, embora continuasse a procurar pessoalmente solucionar o caso.

Verificados esses acontecimentos, os operarios das outras secções das Fabricas Renner, Rio Guahyba e Fiação e Tecidos foram adherindo á gréve, até generalisar-se por todos os departamentos daquelles estabelecimentos.

As declarações dos industriaes

Em busca de informes, percorremos, hontem, as fabricas attingidas pela gréve.

Ali, tudo estava paralysado, silencioso, sem a minima actividade fabricitante dos dias da semana. Apenas os empregados dos escriptorios se entregavam aos calculos e ás escriptas, mudos, quietos, como se estivessem dominados por um sentimento de pezar.

Debaixo desse ambiente incommum, penetrámos, primeiramente, na

Fiação e Tecidos

Expondo ao que iamos, falamos a um dos chefes desse estabelecimento, que assim nos respondeu:

‘Aqui está tudo paralysado. Apenas os mestres e contra-mestres estão seccando umas vinte obras, mas, concluído esse trabalho, nada faremos emquanto não for solucionada a gréve. Os tecelões retiraram-se do serviço sem declarar os motivos, e o mesmo, depois, succedeu com os demais operarios. Na nossa fabrica, entre homens e mulheres, mourejam quatrocentas pessoas, sendo que destas o numero das que desejam continuar no serviço é muito reduzido. Por isso, resolvemos não accender fogo, visto ser contraproducente o serviço parcial. Em consequencia, tivemos de adiar obras e a remessa de muitas encomendas. Enfim, vamos aguardar os acontecimentos.

Fabrica Renner

Nesse grande estabelecimento industrial, nos entendemos com o socio sr. Jacob Renner.

Muito solicito, levou-nos elle ao seu gabinete de trabalho começando por dizer que os seus operarios levantaram a gréve, sem dar aos patrçoes e chefes de serviços a minima explicação.

Retiraram-se usando de um direito, qual seja o de não desejarem trabalhar, e nessa situação continuam.

Tambem o sr. Jacob Renner nos informou sobre a paralysação completa dos trabalhos do seu estabelecimento, declarando que, embora contasse com operarios de algumas secções, não lhe convinha essa actividade parcial, porque isto redundaria em prejuizos maiores com o dispendio de força electrica e outros elementos.

Retirando-nos dessa fabrica, cujo numero de grevistas attinge a 700, passamos á

Fabrica Rio Guahyba

Onde fomos attendidos por um dos seus socios.

Ouvimos, ali, mais ou menos, o que nos declararam na Fiação e Tecidos e na Renner, com a mesma explicativa de que os operarios da Rio Guahyba também abandonaram o serviço sem dizer por que o faziam.

A greve dos padeiros

A maioria da classe padeiral, filiada ao Syndicato que tem esse nome, ha cerca de um anno, mais ou menos, vem trabalhando para abolir o serviço nocturno, tentando tambem o reconhecimento de sua agremiação pelos patrões.

Os seus intuitos, porém, não tem sido recebidos com muita sympathia pelos proprietarios de padarias, principalmente na parte que se relaciona com a admissão do pessoal, que desejam elles seja indicado pelo Syndicato.

Assim, sem chegarem a um accordo com os patrões, de certo tempo a esta parte, vinha aquella classe se movimentando para a conquista de suas pretenções, mas sem resultados satisfactorios.

Há menos de um mez, padeiros da Padaria Tres Estrellas, uma das mais importantes desse genero, manifestaram-sem em gréve, pelo facto de ser ali empregado um homem que não pertencia ao Syndicato.

Esse movimento isolado, entretanto, não logrou effeito, porque os proprietarios daquelle estabelecimento não aceitaram as condições impostas pelos grevistas, dizendo nada terem com a vontade dos que não queriam agremiar-se.

Talvez, devido a esse acontecimento, os padeiros resolveram intensificar a campanha para realização de suas idéas, deliberando, em grande reunião, que o Syndicato tomasse a si a responsabilidade da questão, enfrentando-a, ao mesmo tempo.

A proposta do syndicato

Desempenhando-se da incumbencia que lhe commettera os seus agremiados, o Syndicato endereçou a seguinte proposta aos proprietarios da[s] padarias:

‘O Syndicato Padeiral, representando a classe dos padeiros-quadristas de Porto Alegre, convencido de que o trabalho nocturno é um mal de grandes inconvenientes não só para a saude dos padeiros, mas tambem para a saude da população de Porto Alegre, em geralm, porquanto o trabalho nocturno e a excessividade de horas que esses operarios trabalham, desmanchando uma quantidade de farinha superior ás suas forças physicas, são o coefficiente mais poderoso para o desenvolvimento  da tuberculose; considerando mais que, sem a abolição do actual systema de serviço nas padarias, todas as medidas de prophylaxia, quanto á saude publica resultam inuteis, propomos o seguinte:

1º – Reconhecimento do Syndicato, não devendo trabalhar padeiros-quadristas não associados ao mesmo.

2º – Pegar no serviço ás 5 horas (manhã).

3º – 70 kilos de farinha para cada homem desmanchar (no maximo).

4º – a 2ª turma deverá pegar o serviço logo em seguida á terminação do trabalho da primeira.

5º – Nenhum padeiros deverá dobrar serviço.

6º – O segundo serviço não poderá terminar depois das 8 horas da noite.

7º – Hygiene moral dentro das padarias.

Tendes, pois, em vossas mãos a solução de importante problema social, e, nós, na sexta-feira, 8 do corrente, nos reuniremos ás 9 horas (manhã) para tomar conhecimento da vossa resolução.

Sem mais, nos subscrevemos. Pelo Syndicato Padeiral – Manoel C. Vinhas.

Porto Alegre, 5 de março de 1929.

Nota – caso estejaes de accordo, deveis declarar neste, assignando-o e sellando-o devidamente, e nesse caso, da nossa séde deverão ser enviadas as turmas para começar o trabalho do dia.’

Divulgada essa proposta pelos ineditoriaes da imprensa, ao mesmo tempo que era recebida pelos patrões, os padeiros ficaram aguardando a resposta até hontem, ás 9 horas, dia previamente marcado naquelle documento.

Expirado esse prazo, vinte proprietarios de padarias manifestaram-se, hontem, pelas columnas livres dos jornaes, accentuando, de modo formal, que não reconheciam o Syndicato, nem tampouco abdicavam do direito de escolher os seus empregados porque achavam que isso importavam em diminuil-os dentro de seus proprios estabelecimentos.

Essa resposta ao primeiro item da proposta foi, por assim dizer, o que deu origem á gréve.

Os padeiros, certificando-se da resolução de seus patrões, reuniram-se, hontem, ás 9 horas, na sua séde, á rua Jeronymo Coelho n. 4 e, depois de debaterem o assumpto, entenderam que a situação do momento só [sic]

A declaração da gréve

E isto fizeram, começando a abandonar o serviços nas padarias.

Colhidos por essa consequencia da proposta do Syndicato, os patrões viram-se, em grande maioria, obrigados a appellar para o auxilio dos repartidores de pão, empregando-os no fabrico desse alimento de primeira necessidade.

Em muitos estabelecimentos, porém, o trabalho soffreu paralysação completa.

Apezar disso hoje, a população não se verá privada daquelle producto, porque, com grandes esforços […]”

Autor desconhecido


Referências:

[1] Correio do Povo, 09/03/1929, p. 8 Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho de Porto Alegre, consultado em 30/10/2018.

[2] A grafia original foi mantida.

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