"A cidade precisa..." Correio do Povo, 04/05/1930, p. 9. Hemeroteca do AHMMV. Detalhe.

“A cidade precisa…”

Como é sabido, entre os anos 1920 e 1940 Porto Alegre se modernizava a passos largos. A cidade se remodelava em resposta aos problemas surgidos da concentração de pessoas no que hoje é conhecido como centro histórico, e que não contava com uma infraestrutura bem estabelecida de esgotos, iluminação, adução de água e recolhimento de lixo. Tanto esses problemas quanto as grandes obras urbanas em resposta a eles despertavam o interesse da imprensa e população.

Assim, o Correio do Povo entrevistava um engenheiro afim de esclarecer seus leitores sobre a recente ciência do urbanismo, com seus conceitos e pré-conceitos. Se até hoje, como destaca o entrevistado, se mantém a evidência do urbanismo como campo de conhecimento multidisciplinar,  por outro lado não se considera mais a cidade como um organismo vivo cujos “trechos apodrecidos” devem ser extirpados como em uma cirurgia. Contudo, era uma idéia corrente à época. Também se nota a divisão entre engenharia e arquitetura, com esta última sendo considerada apenas uma contribuição estética às determinações rigorosamente técnicas da primeira.

Mesmo com alguns conceitos ultrapassados, é importante ressaltar o que o engenheiro diz, e que dá o caráter científico ao urbanismo: a preocupação em basear políticas públicas não só em conceitos próprios da área, mas também em levantamentos cadastrais e estatísticos. Por fim, o entrevistado apresenta a idéia de elaborar um plano que coordene não apenas os melhoramentos da cidade na presente administração, mas nas futuras também: eis aí o embrião do conceito de plano diretor.

“A cidade precisa…[1]

Prosseguindo na sua reportagem em torno das mais immediatas necessidades da nossa capital, o ‘Correio do Povo’ abriu um inquérito entre os engenheiros, os quaes se veem mostrando interessados em contribuir para a solução dos nossos problemas urgentes

O que, em palestra, nos disse o dr. Miranda Netto, que revela um conhecimento panorâmico dos assumptos urbanos, que são fixados com clareza

Prosseguindo na sua interessante reportagem em torno das necessidades mais immediatas da Cidade, o ‘Correio do Povo’ ouviu, hontem, o engenheiro Miranda Netto, que fez uma serie de curiosas e oportunas considerações em torno do assumpto.

Da palestra que mantivemos com o dr. Miranda Netto, que allia aos seus conhecimentos technicos uma variada cultura literária e artística, vamos dar, a seguir, um resumo, conservando, o mais fielmente possível, não apenas o seu pensamento, como a fórma por que se exprimiu.

Ás nossas primeiras perguntas, o nosso interlocutor foi falando.

Não nos foi preciso, mesmo indicar os assumptos a abordar. Elle o ia fazendo.

Um pouco de historia

– A urbanização de Porto Alegre, começou o dr. Miranda Netto, é um problema sobremodo complexo. Como aliás todo o problema de melhoramento e expansão de uma idade desenvolvida mesmo desde a fundação.

Todos os planos de coordenação urbana em nossa capital, por falta de verbas ou descaso, até 1924 não passaram de idéas. A não ser um tímido ensaio de projecto em 1916[2] (J. M. Maciel).

A administração Octavio Rocha iniciou a cirurgia urbana. Radicalmente. Rasgou o casario de alto a baixo, extirpou-lhe os trechos apodrecidos, começou enfim o movimento de remodelação que hoje agita a cidade.

Porto Alegre tem vícios graves. E qualidades soberbas. A correcção daqueles e o aproveitamento destas, depende apenas da supervisão indispensável. De um plano harmônico abrangendo o conjunto.

Esta necessidade de um ‘dossier urbano’ completo, minucioso, antes de qualquer tentativa é repisada por todos os autores. Eu gostaria de repetir-lhe o que disse Marcel Poéte, ao abrir os cursos de 1928 no ‘Institut d’Urbanisme’, de Paris.

Affirma na licção inaugural que não se póde entregar o futuro do urbanismo á arte do desenhador de planos. Seria deixar o destino das cidades sob o domínio de meros conceitos lineares. Teriamos aqui o ‘civic centre’, ali o ‘park-system’, numa rigidez de ‘zoning’. Ora isto é absolutamente errado. E depois de examinar friamente a questão afirma. ‘A reconstituição de uma cidade sem um programma de trabalhos especial, technicamente perfeito, é um crime’.

Para que veja o que representa o urbanismo moderno vou indicar sumariamente o que constitue essa arte-sciencia.

Urbanismo

– Todo o mundo se julga urbanista. A sciencia é nova. E de moda. Made in France. Agache, Redont & Cia.

Mas é preciso que se saiba que a technica do engenheiro civil, do architecto, do paysagista são insuficientes, tomadas em separado. Juntas ainda precisarão pedir o auxilio do economista, do historiador e do hygienista para a solução integral do problema. Este não admite meio termo: ou é resolvido seriamente, constituindo um dos mais difíceis casos da technica, melhor da polytechnica moderna, ou não passará de uma insufficiencia, de uma ridicularia e ás vezes de um crime contra a população.

Tendencias

– Há no moderno urbanismo duas escolas, direi com mais acerto duas tendências, opostas e igualmente externadas.

… ‘O romantismo’, cuja expressão mais lidima é Camillo Sitte, o vienense, (Der Städtebau nach seinen Künstlerische Grundsätzen, 1909) e que tirou as suas razões do pitoresco das cidades antigas e medievas e o ‘racionalismo’, cujo precursos foi Hippodamos de Mileto, três séculos antes de Christo interpretado hoje violente a enthusiasticamente por Le Corbusier (‘Urbanisme’, 1924).

A maioria dos urbanistas modernos está em um ponto de vista intermediário. (Ford, Raymundo, Poéte, Parker, Pfeifer, Fischer, Stubben, Unwin, etc). As teorias de Camillo Sitte, demonstradas no ‘Städtebau’ com o exemplo de cidades pequenas ou antigas não podem ser aplicadas ao ‘centro urbano’ de uma grande cidade.

Uma vez ahi o problema só pode ser guiado por dous factores: Transporte e saneamento. Uma vez traçadas as normas rígidas, dentro das coordenadas que delles resultam é que o problema esthetico se apresenta.

Na engenharia moderna a forma é uma funcção de fim.

Repugna, talvez, a alguns architectos urbanistas aceitar essa pratica, corrente para o engenheiro. E querem ficar no ponto de vista tradicional.

No entanto não discutem quando se lhes afirma que quem dicta as formas de uma grande estrutura em concreto armado são as leis da resistência…

E que a esthetica de um arranha céus é funcção das curvas dos momentos. É preciso generalizar o problema urbano. A cidade é um organismo único. E o problema urbano um problema altamente technico.

Cooperações

A remodelação de uma cidade não póde ser effectuada por um único órgão administrativo. Só póde nascer da cooperação intima, harmônica, dos poderes municipaes e estadoaes e, mais ainda, do povo.

O urbanismo é para o povo. Quem lucra com elle é o povo. Quando se trata, no entanto, de uma desapropriação necessária e intransferível a grita dos proprietários é geral. Chega o período das especulações. Só algum tempo mais tarde, com a valorisação, é que o possuidor dos immoveis reconhece o seu erro. Aproveitemos da licção do passado e tentemos instruir o povo em matéria urbana. Aos senhores, jornalistas, é que cabe a parte mais nobre desta missão. Na America do Norte as questões urbanas são resolvidas geralmente por associações privadas.

E estas tem como força principal a imprensa. Temos aqui um exemplo no bello movimento do Rotary-Club a respeito da execução do plano Agache (Parque da Redempção).

O ‘dossier’ urbano

É funcção da municipalidade, porem, a organização de um ‘dossier urbano’, completo com dados geológicos, hydrologicos, topográficos, climatéricos econômicos e sociaes. Além de um estudo sobre a localização da cidade com relação ao plano do Rio Grande do Sul. Porque as estradas e as vias navegáveis traçam sobre o mappa o que os americanos chamam o ‘state-planning’.

E dessa posição relativa póde-se prever muita cousa útil para o estudo em apreço.

A arma do urbanista é a estatística. As suas curvas esclarecem as complexidades e interpretam os factores evolutivos de uma cidade. Os ‘services d’extension’ de Paris, tem um aparelhamento notável de estatística. Um exemplo interessante é a curva de accrescimo da população organizada por M. Bonnefond com a reunião das curvas de diversos centros de Paris. A curva, que reproduzimos, é a composta do Iº, Xº, XVº districtos e de St. Denis.

Os gráficos relativos á circulação também são indispensáveis.

Para a solução dos diversos problemas que nascem da observação das estatisticas é necessário o cadastro da cidade.

Nenhum urbanista pode trabalhar seriamente sem um cadastro completo, sem o ‘dossier’ urbano nas mãos. Neste ponto não há duas opiniões.

A não ser que se considere o urbanismo como a arte de tornar attrahentes e pitorescos alguns pontos esquecendo o seu papel de transformador racional do organismo da cidade.

Os problemas

– Eu creio que no decorrer de uma palestra rápida não se podem sequer enumerar os problemas urbanos de Porto Alegre.

Uma só administração não pode resolvel-os todos. Seria um idealismo pueril ou uma exigência descabida tal pensamento.

Entretanto o administrador que tratasse de pô-los todos em foco, organizando um plano systematico a ser seguido pelos vindouros faria obra de benemérito.

Os problemas de nossa cidade são de quatro especie [sic].

Hygienicos, de viação, sociaes e estheticos.

Na primeira especie está compreendido o saneamento de São João e Navegantes, bairros baixos e inundáveis, problema de solução difícil e que talvez dê origem á construção de um caes de saneamento. Exgottos da cidade, cuja rede é ridiculamente pequena para a população extendida que temos, caes de passeios na belíssima praia que vae da cadeia ao Crystal, com a Avenida circular resultante de sua construcção, canalização do Riacho, creação de parques e jardins como ‘pulmões da cidade’, etc.

Na segunda as avenidas, os alargamentos de ruas e o estudo de um plano de viação pra a cidade.

É de necessidade determinar a comunicação rápida entre o centro de negócios (commercio, administração, governo) e todos os bairros. As ruas naturalmente indicadas para esses caminhos directos de centro a bairros são Vol. da Patria, a futura Avenida Farrapos, Julio de Castilhos, Avenida S. Raphael[3], Christovam Colombo, Independencia, Bomfim, Redempção – Azenha – José do Patrocínio, 13 de Maio e a futura Avenida circular, á beira-rio.

Isto systematicamente; como communicação radial, formando quasi um systema em leque.

A Avenida Borges de Medeiros é uma avenida de ligação entre os raios extremos, evitando a rampa resultante da topographia do centro.

O estudo das linhas de omnibus e bondes, de trens de subúrbio é necessário. E, como ultima questão, que não é tão fácil como parece e exige a collaboração do Estado e do Municipio, temos o problema da estação terminal da Viação Ferrea.

Debaixo do ponto de vista social, há exigência, para os bairros que se estão a formar, de uma visão de conjunto. A maneira pela qual se fazem hoje os chamados bairros-jardins é verdadeiramente anarchica. Porque não se trata, na maioria dos casos, de bairros-satellites, que viveriam isolados, mas de bairros que vão constituir, unidos, um systema urbano cerrado. Com o futuro, as ligações de bairros projectados tão diversamente serão um problema insolúvel.

O estudo e a organização dos bairros operários é uma necessidade grande. Deve fazer parte do plano de conjuncto.

Vem a ultima especie de problemas: os estheticos. Têm a palavra os architectos. O engenheiro determina as coordenadas, rígidas. Prevê, calcula, Cabe áquelles disfarçar asperesas da rasão [sic] com a subtileza da arte.

Porto Alegre tem muita cousa bôa feita nestes últimos sete annos.

Mas a sua maior necessidade é a organização urgente do cadastro para um plano de conjuncto que permita, em vagar e segurança, transformar a nossa cidade em uma metrópole digna da communhão gaucha”.

Autoria desconhecida.

"A cidade precisa..." Correio do Povo, 04/05/1930, p. 9. Hemeroteca do AHMMV.
“A cidade precisa…” Correio do Povo, 04/05/1930, p. 9. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

 

Referências:

[1] Correio do Povo, 04/05/1930, p. 9. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. A grafia original foi mantida.

[2] A data correta do Plano de Melhoramentos de João Moreira Maciel é de 1914.

[3] Atualmente, a avenida Alberto Bins.

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