Remunerações revistas, tiragens em queda, status precários: os autores de quadrinhos e ilustradores têm ainda motivos para sonhar? Um estudo de SmartBe analisa a situação que exige nossa atenção.

Estudos – Duas situações diferentesA primeira: SmartBe, associação de profissionais do ramo criativo, publica um estudo de Pascal Lefèvre e Morgan Di Salvia, “Quadrinhos e Ilustração na Bélgica: situações profissionais e sócio-econômicas do setor”, reforçado por “Os editores de quadrinhos e literatura infanto-juvenil”, de Marie Challe e Anne Dujardin, coeditados com o Crisp.

É a primeira vez que se faz uma avaliação da situação da nona arte de que a Bélgica é tão orgulhosa – ainda que seu centro econômico e criativo seja agora a França. Além de uma pesquisa junto aos autores de quadrinhos e ilustradores, este documento aparece como um vade-mecum profissional, apontando escolas, estatutos, tipos de renda, circuitos do livro e sociedades de autores.

Os números:

604 profissionaisé o número de desenhistas de quadrinhos ou ilustradores belgas contatados por SmartBe. 191 destes são francófonos e 72 são de língua flamenca, e responderam total ou parcialmente ao questionário proposto.

75 editoresO número de estruturas de edição de quadrinhos e de livros infanto-juvenis (desde filiais de multinacionais até editoras independentes) foram recenseadas por SmartBe e Crisp.

O estatuto da maioria dos ilustradores belgas ainda é precário. Salários e situações variam num setor pouco estruturado.Análise: Alain Lorfèvre

De Hergé a Midam, passando por Peyo, o mundo das HQs belgas não carece de história de sucesso. Tiragens astronômicas, adaptações televisivas ou cinematográficas, produitos licenciados: os quadrinhos se vendem a preço de ouro até, como agora, em galerias de arte e casas de leilão. Até o nicho editorial infanto-juvenil abocanha somas consideráveis em direitos autorais (royalties): os 500.000,00 Euros, além do prêmio Astrid Lindgren Memorial, ganhos pela bruxelense Kitty Crowther, incentivam os que se sentem vocacionados para essa profissão.

Mas em comparação a esses afortunados artistas, quantos outros ainda têm de se contentar com as vacas magras? “80% dos autores de quadrinhos exercem outra atividade profissional,” nos assegura Jean Van Hamme, “pai” de “XIII”, “Thorgal” e “Largo Winch”. Ele mesmo, ainda que sem mais preocupações financeiras, só encontrou o sucesso no meio dos anos 80, quando tinha então mais de 40 anos e quase 15 de trabalho na área.

O estudo “Quadrinhos eIlustração na Bélgica: situações profissionais e sócio-econômicas do setor” , de Pascal Lefèvre e Morgan Di Salvia, confirma que esta profissão resta uma forma de artesanato de perspectivas incertas. De 259 questionados (desenhistas, roteiristas, escritores) dos dois lados da fronteira lingüística, somente 11 afirmam estar empregados em tempo integral. 60 se dizem freelancers em tempo integral, 96 intermitentes – dos quais 25 com “estatuto de artista”. Do lado francófono, as faixas de renda mensal variam entre 1.000,00 a 1.499,00 Euros (22,7%), 750,00 a 999,00 Euros (20,5%) e menos de 500 Euros (19,4%).

De acordo com o estudo de SmartBe, a renda média é geralmente mais elevada para aqueles que escolhram o estatuto de freelancer (e que assim o fizeram tão logo suas rendas foram suficientes para cobrir também os encargos sociais da atividade). Da mesma maneira, e logicamente, os desenhistas ou ilustradores mais velhos são os que obtém as mais altas rendas (78,3% dos que ganham mais de 1.500,00 Euros por mês têm mais de 35 anos).

De modo mais surpreendente, os modos de remuneração são bastante diversos. A maioria (65,9%) dos desenhistas de quadrinhos são pagos por página, enquanto que a remuneração global (por publicação) domina entre os ilustradores (63,3%). Esses modos de pagamento podem ainda ser acompanhados de remuneração sob forma de direitos autorais ou adiantamento sobre estes. Nota-se, porém, que 56 dos participantes do estudo declaram ter produzido, desde 2005, pelo menos uma obra sem receber remuneração.

O estudo ainda salienta em relação a isso (talvez revelando outras intenções por parte do contratante) a ausência de associação profissional especializada na defesa dos autores de quadrinhos e ilustradores (4). Um absurdo num país que se orgulha de uma grande tradição no setor. Num momento em que tantos editores consolidados quanto instituições públicas reivindicam o patrimônio de quadrinhos do país, tanto uns quanto outros poderiam se sentir inspirados a assegurar que essa tradição seja mantida nas próximas gerações através da valorização de seu trabalho e protegendo melhor sua remuneração e estatuto. De outra forma, arrisca-se ver a Bélgica, “terra dos quadrinhos”, deserta de seus artistas e seu slogan sem mais sentido.

Fonte: La Libre Entreprise, 20.11.2010

Uma profissão que não se encaixa no formato tradicional

Há que se (sobre)viver no longo período de produção e prazos de pagamentoNo último 26 de outubro, o roteirista fracês Fabien Vehlmann (“Seuls”, “Le Marquis d’Anaon”, “Spirou et Fantasio”) manifestava em seu blog a preocupação com o “recuo acelerado e massivo dos adiantamentos sobre direitos autorais” na “indústria” dos quadrinhos. O adiantamento sobre os direitos autorais é um montante pago antecipadamente aos autores pelo editor, e reembolsado pelos ganhos nas vendas do álbum produzido. Fabien Vehlmann situa “de modo muito aproximado” em torno de 12.000,00 Euros o valor adiantado por um álbum de 48 páginas (ou seja, 1.000,00 Euros por mês, tendo-se em conta o prazo de um ano para a produção de um álbum) e em torno de 15.000 o número de álbuns vendidos para “reembolsar” este valor adiantado. Passada essa cifra, o autor começa a receber sua parte em direitos autorais sobre as vendas do álbum.
Contudo, as vendas caem: um novo título pode atingir no máximo 5.000 exemplares vendidos. Mesmo os “veteranos” não são poupados: Hermann (“Jeremiah”) conta que sua recente retomada de “Bernard Prince” não venderá mais de 30.000 exemplares. É a conseqüência lógica do aumento do número de títulos num mercado que não pode ser expandido indefinidamente. Vehlmann estima que os adiantamentos atingem doravante um teto de 10.000 Euros – até mesmo 3.000 para os blogueiros a quem se propõe de editar em versão impressa suas criações difundidas via web. Evidentemente, são casos diferentes. Certos autores consolidados vivem de sua arte, e a antiguidade ajuda: quanto mais títulos se tem no currículo, mais se recebe em direitos autorais sobre as vendas.

É o caso do belga Mario Ramos no setor editorial infanto-juvenil, com 29 títulos publicados por L’École des Loisirs desde 1995). A título pessoal, o autor não passa por qualquer dificuldade, mas reforça a particularidade de uma profissão em que “as rendas são irregulares ou aleatórias” (pois que são dependentes das vendas). Ele também salienta que a baixa da TVA (taxa sobre valor agregado, imposto indireto sobre bens de consumo) sobre os direitos autorais foi benéfica, mas que, por outro lado, a obrigação de pagar contribuições antecipadas sobre montantes de remuneração ainda indeterminados e difíceis de estimar (pois que dependentes das vendas) deve ser reconsiderada.

O peso dos quadrinhos
Na paisagem cultural, o mercado editorial tem um peso considerável, e, dentro dele, os quadrinhos e a ilustração infanto-juvenil são um pilar essencial.

O último relatório da Associação de Críticos de Histórias em Quadrinhos (ACBD, em francês) relativo ao período de 2009 aponta um crescimento de 2,9% na produção de histórias em quadrinhos em língua francesa, com um volume de negócios estimado em 320 milhões de euros. 4.863 títulos em quadrinhos foram publicados em língua francesa, dos quais 3.599 absolutamente novos (lançamentos). A despeito destes números animadores, nota-se uma estagnação em relação ao crescimento de 2008 (10,4%). Na Bélgica, o volume de negócios do mercado editorial infanto-juvenil (quadrinhos e literatura infanto-juvenil) se aproximava, em 2008, os 100 milhões de euros, ou seja, quase 40% do mercado editorial.

Contudo, 65% do mercado é dominado por 9 grandes grupos multinacionais. O primeiro é o colossal francês Média Participations. Compreendendo editoras tradicionais como Dargaud, Le Lombard e Dupuis, Kana (dedicada ao mangá), este grupo representa 12% da produção e contabiliza 33% dos exemplares vendidos. O resto do mercado se divide entre 279 editores, microeditores e autores independentes.

Do conjunto das “indústrias culturais”, a dos quadrinhos é uma das menos subsidiadas pelas administrações públicas – mesmo que exista na Bélgica, seguindo o modelo da Comissão Nacional do Livro francesa, uma Comissão de Auxílio à História em Quadrinhos (em comunidade francesa desde 2002) e uma Vlaams Fonds voor de Letteren (em comunidade flamenca, desde 2000).

–> 1. Na Bélgica, contrariamente à França, não há um estatuto real da profissão, mas uma exceção às regras de concessão de seguro desemprego.

–> 2. A renda média na Bélgica, estimada por uma pesquisa do SPF Economie sobre as declarações fiscais do exercício 2007-2008, situa-se em torno de 2.140,00 euros.

–> 3. Deve-se salientar, porém, que entre os artistas questionados pela pesquisa, somente uma minoria trabalha para os grandes editores. Do lado francófono, 68,4% deles trabalham para pequenos editores ou se auto-publicam.

–> 4. O antigo redator-chefe de “Spirou”, o saudoso Yvan Delporte, fundou a UPCHIC (União de Profissionais Criadores de Histórias em Imagens e Cartuns) que tinha um caráter ainda informal. Na França de hoje, centro nevrálgico do quadrinho franco-belga, o Grupo dos Autores de Histórias em Quadrinhos (GABD, em francês), surgido do Sindicato Nacional dos Autores e Compositores, faz o papel de sindicato de autores desde 2007. Entre seus membros fundadores, Fabien Vehlmann, Lewis Trondheim, Christophe Arleston e Franck Giroud.

(Este post é uma tradução livre do artigo “Les intermittents au pays des bulles”, escrito por Alain Lorfèvre, publicada na edição do dia 20.11.2010 da revista belga “La Libre – Entreprise”. As duas imagens que o ilustram são do mesmo artigo. Clique no link La Libre Entreprise – Auteurs de BD para fazer o download do original em francês.)

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