“Um porão dividido em oito quartos!”

A partir da década de 1920, Porto Alegre crescia em sua população ao mesmo tempo em que demolia casas e sobrados nas obras de remodelação urbana, gerando uma crise de moradia na área central da cidade. Como é no centro que se concentrava a maior parte dos recursos de infra-estrutura e oportunidades de trabalho, os pobres preferiam morar no centro, ainda que em condições insalubres como as que os porões ofereciam.

Sem ventilação ou iluminação adequadas, ou mesmo instalações sanitárias, estes subterrâneos de grandes casarões como os que se vêm nas fotografias da reportagem do Estado do Rio Grande eram alugados a preços exorbitantes. Se por um lado a população pobre poupava algum dinheiro em transporte, não necessitando deslocar-se de um arrabalde para o centro, por outro pagava caro para viver – e mal – no coração da cidade.

Às autoridades municipais não havia dilema: era preferível desalojar as pessoas a deixa-las morar em porões. Mas para onde elas iriam?

“O problema dos porões em Porto Alegre[1]

O professor Freitas e Castro, diretor da Hygiene, inspeccionou demoradamente essas infectas habitações

Em benefício da Saúde de centenas de infelizes que nelas residem, determinou s. s. que os porões sejam immediatamente desoccupados.

O ‘Estado do Rio Grande’ publicou, há dias, uma pormenorizada reportagem sobre os porões existentes em Porto Alegre.

Demonstrámos, nessa occasião, os gráves perigos a que estão sujeitos os que habitam esses imundos cubículos.

Sem ar, sem luz e, além disso, húmidos, os porões são alugados sob o pretexto de favorecer as classes pobres em virtude da crise de habitações.

É realmente de pasmar que haja quem assim julgue ou queira fazer acreditar. Protegendo esses infelizes, dando-lhes para moradia um subterrâneo, significa aumentar-lhes a desgraça.

Infelizmente é o que irá acontecer a essa pobre gente. Terá de sucumbir ao cabo de algum tempo, em consequência das moléstias que adquire nesses infectos porões.

E dizer-se que esses cubículos são alugados para auxiliar os pobres!

Para lançar por terra tamanho disparate, baste frizar que são alugados por quarenta, sessenta, noventa e até por cento e vinte mil réis mensaes, não se contando os porões que são divididos em pequenos compartimentos e que chegam a render trezentos e vinte mil réis por mês!

Em bôa hora, porém, o professor Freitas e Castro, diretor da Hygiene, resolveu pôr termo a esse inqualificável abuso, em benefício da saúde de centenas de infelizes.

Hoje, pela manhã, o ilustre hygienista percorreu diversos pontos da cidade, fazendo uma inspecção rigorosa nos porões.

Um dos nossos representantes acompanhou s. s. nessa visita, tendo a ocasião de constatar, não só as immundícies que oferecem essas habitações, como a situação de miséria em que vivem os seus moradores.

De todos os porões percorridos, torna-se necessário destacar, dadas as suas péssimas condições, os que abaixo mencionamos.

Na rua Misericórdia[2]

Causou-nos espanto quando nos foi dado a observar o porão do prédio n. 40 da rua Misericórdia.

O diretor da Hygiene bem como o representante desta folha tiveram de ali penetrar um tanto agachados.

O assoalho do andar superior que serve de tecto ao porão estava coberto de teias de aranha.

No chão, ao lado da parede, existe uma calha que escoava água servida. Além da humidade e um cheiro de causar náuseas, a escuridão era profunda, não se enxergando um palmo adeante dos olhos.

O porão está dividido em seis compartilmentos de táboas, o que torna mais critica a situação dos que nelles moram.

O ar ali quási não penetra, dormindo algumas pessoas sobre um cobertor attirado no chão.

Com a presença do diretor da Hygiene, alguns inquilinos levantaram-se, abandonando suas tocas.

Eram homens e mulheres macilentos, andrajosos. O seu aspecto era bem o índice do meio em que vivem.

Todos mostravam abatimento physico, devido à insalubridade da habitação.

Era de causar dó a situação desses miseráveis que, além de não possuírem conforto algum, são torpemente explorados.

Cinco mil réis diários por um cubículo

O porão de que acima falamos, possue duas entradas.

Uma delas, a do lado esquerdo, foi alugada a um sapateiro, que installou sua meza de trabalho e um metro a pouco de distância da porta.

Esse compartimento, aliás, não possue mais do que três metros de fundo.

Apezar de acanhadíssimo, o sapateiro se sente feliz em haver encontrado um óptimo logar para poder ganhar o seu dinheiro.

O diretor da Hygiene ficou surpreso quando o concertador de calçados lhe informou pagar cinco mil réis diários por tal cubículo, o que representa cento e trinta mil réis mensaes, descontados os domingos.

Em frente á praça Conde de Porto Alegre

Deixando a rua Misericórdia, o professor Freitas e Castro dirigiu-se ao porão n. 20 da rua Riachuelo, em frente á praça Conde de Porto Alegre.

Está localisado nesse local o Salão Amir, com secções de engraxataria e venda de revistas e jornaes.

No fundo desse porão, o visitante tem a impressão de achar-se a alguns metros sob o sólo, tal a humidade e a escuridão reinantes.

Apezar disso, ali pernoitam os engraxates e outros menores vendedores de jornaes.

Um porão dividido em oito quartos!

Na rua Demétrio Ribeiro n. 487, descobriu o diretor da Hygiene um porão onde residem 12 pessôas!

Se bem que cimentado, o referido porão é completamente escuro e de pouca altura.

Acha-se elle dividido em oito quartos onde o ar verdadeiramente não tem entrada.

Uma das inquilinas informou que cada um desses compartimentos é alugado à razão de quarenta mil réis mensaes!

É realmente de causar espanto.

O proprietário desse porão inhabitável tem de rendimento mensalmente a quantia de trezentos e vinte mil réis.

Óptimo negócio esse que rende mais do que se possuísse uma modesta casa em condições hygienicas mesmo em plena zona urbana.

As providencias do director da Hygiene

Voltando à sua repartição, o professor Freitas e Castro baixou instrucções severas aos Centros de Saúde, no sentido de que sejam imediatamente desoccupados todos os porões existentes na cidade.

O director da Hygiene somente permittirá que se aluguem porões que tenham 2,80 metros de altura.

Os que não estão compreendidos nestas medidas, não poderão de modo algum ser habitados e deverão servir unicamente para depósito de lenha ou de outros objectos.

A decisão do director da Hygiene, que é digna de applausos, visa principalmente evitar a propagação da tuberculose proveniente dos infectos porões.

Amanhã, os fiscáes daquelle departamento sanitário percorrerão diversas zonas da cidade, scientificando os proprietários dos porões da resolução de seu director”.

Autoria desconhecida.

"O problema dos porões em Porto Alegre" Estado do Rio Grande, Ed00284, 2X/09/1930, p. 5. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
“O problema dos porões em Porto Alegre” Estado do Rio Grande, Ed00284, 2X/09/1930, p. 5. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Referências:

[1] Estado do Rio Grande, Ed00284, 2X/09/1930, p. 5. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[2] Atualmente, a rua Professor Annes Dias.

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