O boato no coração da cidade

Os boateiros da pandemia pré-zap

Se uma situação extraordinária como uma pandemia suscita ainda mais debates sobre o que em 2020 chamamos de fake news, na Porto Alegre de 1918 elas se chamavam ‘boatos’.

Histórias escabrosas, impressionantes, criadas não se sabe por quem – os boateiros de ontem, hoje gente bem mais profissional – mas sob medida para instilar o medo e criar preocupações desnecessárias num contexto já complicado, elas se espalhavam, como hoje, tal fogo na palha. Ontem, no boca a boca; hoje, nas redes sociais.

Em comum, estarem sempre presentes.

“O ‘boato’ no coração da cidade[1]

A influencia contagiosa do boato é uma das tantas conclusões de que a philosophia humana ainda não cuidou de revelar o gráo perigosamente singular que ella inspira no coração das grandes cidades, em que a fagulha chispante da sua temibilidade póde alcançar effeitos terriveis e talvez crear, aos governos, situações embaraçosas.

Diz-se facilmente de um ‘boato’ como si se contasse uma anecdota ou uma historieta inoffensiva e fica-se depois a esperar o effeito produzido… Si esse resultado não provocou o pavor que se aguardava, augmenta=se a fórma do ‘boato’: dão-se-lhe attitudes escabrosas, e, no final de contas, quando a ‘roda’ não percebe o assombro do ‘boato’, deita-se-lhe, então, oleo fervendo e chega-se at[é] a affirmar que o que se diz foi visto e observado, a horas taes, em tal logar…

Faz-se, como é natural, o vacuo na ‘roda’, e aquelles que, indifferentes antes, não ligavam importancia ao caso, tornam-se o escoadouro do ‘boato’ e propagam-no por todos os cantos da cidade.

‘Eu vi com estes olhos cinco mortos na rua dos Andradas; disseram-me que os coveiros cavam noite e dia as sepulturas’; ‘Fulano (que está vivo e um poucochinho doente) acaba de morrer…’ e outras e outras affirmações que só a policia correcional podia evitar.

Dessa fórma andam, pelas ruas, ilesos, os ‘boateiros’, explorando a situação enferma da cidade, accedendo perigos onde não existem, creando flagellos e amedrontando a a calma da população, entregue, agora, a um trabalho de preoccupações mais uteis.

Pudessemos assignalar, pelas ruas, esses ‘boateiros’ com as mesmas vestes que habitualmente trazem os condemnados e o ‘boato’ abandonaria a cidade, varrendo-a desses desoccupados que a infestam e de quem a ‘influenza’ não se apiedou…”


[1] Revista A Máscara, 23/11/1918, Anno I, Número XLI, p. 12-13. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Autoria desconhecida. A grafia original foi mantida.

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