"No antro de Echú". Correio do Povo, 24/09/1930. Detalhe

“O antro de ‘Echú'”

Não raro os jornais promoviam a perseguição às religiões afro-brasileiras nas cidades, e com Porto Alegre não foi diferente. Ainda que com forte presença desde os primeiros tempos da formação da cidade, conforme testemunham diversos cronistas, as atividades, costumes e religiosidades próprias da sua população negra foi continuamente alvo de perseguições policiais. A reportagem do Correio do Povo abaixo é reveladora disso: além da periferização da população pobre e negra, também fica explícito o olhar estigmatizante para as suas práticas e religiosidade. Como em diversos outros casos, o discurso dos repórteres visa apontar os inconvenientes da sua presença no contexto urbano, relatando com indisfarçado descuido os detalhes da cerimônia e apontando o seu caráter ‘primitivo’, típico de uma visão eurocentrada.

É interessante que o casebre caracterizado como o perigoso ‘antro de Echú’ que ilustra a reportagem seja um pequeno barraco de tábuas, típico das áreas mais miseráveis da cidade.

 

Como se explora a credulidade do povo[1]

Mystificadores de toda sorte… – Cartomantes etc. – Os ‘batuques’, praga que infesta os arredores da cidade – Uma interessante reportagem do ‘Correio do Povo’ – As ‘moambas’ e suas praticas – Os ‘batuqueiros’ e a sua ousadia

Ha tempos, já, que o ‘Correio do Povo’, em successivas reportagens, vem tratado dos innumeros centros de exploração da credulidade do povo.

Tendas de cartomantes chiromantes[2], casas onde se realisam ‘batuques’ e outros ritos de feitiçaria, e todos os fócos de propagação de bruxaria, trazem em constante agitação os moradores das ruas onde estão localisados, dando logar a innumeras queixas.

As autoridades, entretanto, nada têm feito, ao que se sabe, para livrar o povo dos espertalhões que fazem meio de vida da ‘magia negra’, mystificando os incautos que lhes caem nas mãos.

Não é tudo, porém. Em virtude da impunidade em que taes individuos vivem, largamente compensados pelo producto rendoso de suas vigarices, crescem, dia a dia, em audacia, não procurando já esconder suas praticas de ‘moambeiros’ e realisando estas aos olhos da policia.

Por isso, Porto Alegre, e, especialmente os seus arrabaldes acham-se infestados de casas de ‘batuques’ que vão se alastrando cada dia com maior intensidade.

Um escandalo como se vê. Haja vistas ás já celebres casas denominadas ‘Mãe Emilia’, ‘Antoninho’ e ‘Tubino’, onde se pratica toda sorte de feitiçarias, desde o ‘despacho’ até a invocação a ‘Echú’.

Esses antros, que se acham localisados no 2º districto[3] desta capital, trazem a visinhança em constante sobresalto com algazarras e disturbios, originando isso, como dissemos, innumeras reclamações.

Hontem, ainda, uma queixa nos foi trazida contra uma destas casas, a qual funcciona no predio n. 597 da rua Cancio Gomes, na Floresta.

Disseram-nos os queixosos que, em virtude da algazarra infernal que ali se verifica todas as noites, a visinhança não tem socêgo, vendo-se impossibilitada de dormir, tanto que duas familias já se mudaram do local, por não poderem supportar o barulho.

– Accresce a isso, – ajuntaram os queixosos, – que nas portas de suas casas, apparecem constantemente varios ‘despachos’, o que lhes é profundamente desagradavel.

Procurando syndicar em torno do facto, a reportagem do ‘Correio do Povo’ dirigiu-se para o local onde funcciona o antro de ‘Echú’.

Realmente, á rua Cancio Gomes, fomos encontrar um casebre em cuja porta fronteira se lia um cartaz com o seguinte dizer: ‘Cartomante’.

Procuramos informar-nos pelas immediações sobre a natureza dos habitantes daquelle casebre.

Conseguimos saber, então, o nome do feiticeiro, apellidado ‘Manoelsinho’, de grande influencia na zona pelos seus ‘passes magneticos’.

Ainda no local, tivemos opportunidade de ouvir um ‘batuqueiro’ que nos poz a par de interessantes trabalhos do rito da ‘moamba’ que ali se realisa.

O noviço que ingressa em casas de tal indole, só póde fazer apresentado por um ‘filho da casa’.

Recebe, então, um titulo que póde ser o de ‘Xangô’, ‘Edun’, ‘Bará’, ‘Demanjá’, ‘Areim’ e tantos, conforme o ‘santo’ que o patrocina.

Aberta a ‘sessão’, a cerimonia tem logar com as danças.

Lançam-se os ‘buzos’ (caramujos que são apanhados no ‘bejé’ (‘altar santo’).

Sabe-se, então, quaes as offerendas que o ‘iniciado’ deverá trazer dentro de uma quinzena ao ‘Pae santo’ e que serão gallinhas pretas, amarellas, carijós, cabritos ou sete bananas.

Interessante, como se vê.

Após ouvirmos estas declarações, proseguimos em nossas pesquizas.

Queriamos fazer uma visita ao predio n. 597 da rua Cancio Gomes.

Alguem, entretanto, foi avisar ao ‘batuqueiro’ dos nossos propositos.

Sabedor de que eramos reporters do ‘Correio do Povo’, ‘Manoelsinho’ com mais dois ‘irmãos’ foi estacionar na frente do predio, chegando mesmo a ameaçar-nos.

O nosso reporter photographico, porém, não se intimidou, conseguindo depois de algumas peripecias, bater uma chapa que claramente demonstra a que ponto chegou a ousadia dos exploradores da credulidade publica.

É digno de destaque, o facto de serem encontrados, quasi diariamente, no coradouro daquelle antro de exploração, fardamentos de guardas civis”.

Autoria desconhecida.

"Onde se explora..." Correio do Povo, 24/09/1930. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.
“Onde se explora…” Correio do Povo, 24/09/1930. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

Referências:

[1] Correio do Povo, 24/09/1930. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. A grafia original foi mantida.

[2] Na grafia atual, quiromantes, que fazem leitura de mãos.

[3] Atualmente, a região do bairro Floresta.

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