Talvez a primeira imagem que me chamou atenção pelo estilo. Anúncio num exemplar do jornal A Federação (RS) de 1925-26. Hemeroteca do MCSHJC.

Estilo, bico de pena e desenho de imprensa

Como eu havia referido no post anterior a respeito de desenvolvimento de estilo, a minha transição do lápis num traço realista e “certinho” para o bico de pena mais solto não foi nada fácil. Como devo ter referido, devo ter ficado uns dois anos entre idas e vindas, experimentações e muitos cabelos arrancados até me sentir à vontade com o bico de pena. Em compensação, quando fiquei à vontade com o bico de pena, a surpresa foi descobrir um novo estilo. E uma outra forma bem mais tranquila de encarar o desenho.

O que eu não havia enfatizado o suficiente foi a forma como a minha pesquisa de mestrado em arquivos de jornais e revistas da Porto Alegre dos anos 1920 me influenciou. Na verdade, eu não havia me dado conta disso até ministrar uma das aulas do curso de desenvolvimento de estilo[1] em que expus os desenhos de imprensa que encontrava nas chamadas publicitárias ou sob a forma de charges nos jornais e revistas ilustradas.

Até onde sei, o desenho com tinta preta foi uma das formas de fazer imagens facilmente reprodutíveis com a tecnologia de imprensa disponível no início do século XX. Salvo engano, esse também foi um dos motivos pelos quais os quadrinhos, por sua necessidade de reprodução fácil em grandes tiragens baratas, também se originam na linguagem gráfica da pena/pincel e tinta preta, e só mais recentemente, com a popularização das mídias digitais, é que outras propostas gráficas puderam ser igualmente desenvolvidas para o gênero sem restrições de reprodução. De qualquer forma, tanto nas páginas do Correio do Povo ou d’A Federação quanto da revista A Mascara, muitas peças ilustrativas e publicitárias feitas a bico de pena ou técnica semelhante se ofereciam ao olhar, marcando o que para mim foi a redescoberta de uma técnica que eu havia deixado de usar anos antes e também de uma estética da época que terminou se colocando como horizonte para minhas experimentações com arte-final.

Talvez a primeira imagem que me chamou atenção pelo estilo. Anúncio num exemplar do jornal A Federação (RS) de 1925-26. Hemeroteca do MCSHJC.
Talvez a primeira imagem que me chamou atenção pelo estilo. Anúncio num exemplar do jornal A Federação (RS) de 1925-26. Hemeroteca do MCSHJC.

Lembro que ainda pesquisando notícias sobre os becos de Porto Alegre no jornal A Federação[2] deparei-me pela primeira vez com a imagem acima. Ilustrando uma chamada publicitária de algum produto cosmético, me recordo de tê-la fotografado pela beleza do traço com nanquim. Eu ainda não sabia, mas estava buscando algo que essas imagens tinham para incorporar ao meu trabalho.

As imagens acima foram encontradas da mesma forma durante a pesquisa, e comecei a registrá-las pela beleza da execução com linhas bem definidas. Ainda com medo de experimentar o bico de pena, que me parecia uma técnica difícil, comecei a usar canetas descartáveis de nanquim e notava que o traço não era tão definido e forte como no bico de pena. Apesar do maior controle que elas ofereciam, o efeito definitivamente não era o mesmo. O traço da pena tinha uma definição e precisão que, se por um lado ganhava em firmeza, exigia uma certa reinvenção de minha parte. Não era possível recriar a suavidade de nível de detalhamento do lápis num desenho pequeno a bico de pena. O que fazer?

Comecei a notar que uma das coisas que me agradava muito nos trabalhos feitos com essa técnica era justamente essa exatidão e força da linha preta, que se multiplicava para criar meios-tons através de hachuras paralelas, dando um efeito de cinza muito bonito e característico. Mais tarde, encontrei grandes expoentes desse estilo nas figuras de artistas do início do século XX como Nell, Charles Dana Gibson e James Montgomery Flagg.

Contudo, essa profusão de linhas paralelas não era para mim. Eu não queria renderizar meu trabalho a tal ponto com linhas pois, quando se considera a multiplicidade de desenhos que uma única página de quadrinhos contém, esse estilo torna a carga de trabalho muito grande. E, na minha visão, um tanto poluída para uma linguagem narrativa. Por isso, fui buscando adaptar essa dinâmica ao meu desenho, resultando num trabalho com bico de pena mais leve, com repetição de linhas e meios-tons em alguns pontos, ainda tributário do contorno como definidor das formas.

Para isso, fui coletando ainda mais dos belos desenhos publicitários e ilustrativos qua apareciam naqueles velhos exemplares de arquivo, e reparando nas soluções gráficas de trabalho de linha que cada artista – na sua maioria anônimos – apresentava.

Ou seja, eu queria contar uma nova história e para isso tinha que encontrar um novo estilo, uma nova estética, e de preferência uma que se relacionasse intimamente com a época em questão. Inconscientemente ou não, fui naturalmente me dirigindo a reproduzir essa estética da época, cujo traço forte do nanquim sempre me fascinou e agradou muito.

E graças a livros como o clássico de Arthur L. Guptill pude ter amostras de várias formas de desenhar com pena e tinta, de modo a desenvolver meu estilo e me apropriar da técnica para criar algo que, ao menos para mim, é novo.

Enfim, eu mesma não havia me dado conta de como a linguagem do desenho de imprensa da época me havia influenciado na escolha de uma direção estilística, mas pelo que esta breve reflexão deixa concluir, sem dúvida devo muito a esses antigos desenhos.

Referências:

[1] Na Galeria Hipotética, em outubro deste ano.

[2] Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, Porto Alegre.

2 Comments

  1. Gigalovax Cândido (@candido_art)

    Muito legal tu compartilhar suas experiências nessa busca por um estilo próprio com a pena, pra vermos que a sua arte “não veio do nada”. E adoro como você incorporou a elegância nas linhas mas o gestual dos personagens é mega dinâmico, o povo não tem essa cara de paisagem das antigas ilustras de moda 🙂

    1. Beco do Rosário

      Obrigada, querido! Realmente o desafio foi esse, dar expressão pra um traço meu que antes tava super xoxo e sem graça criando uma nova forma de desenhar. E eu não tinha me dado conta do quanto essas ilustras de época tinham contribuído para isso. 🙂

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