‘Á la garçonne’

“Cabellos ‘á la garçonne’…[1]

Como muitos da sua época, o cronista parece usar da ironia para transparecer sua inconformidade com os cabelos curtos femininos. A ilustração mostra Satanás tentando a jovem:

“Corta-o, minha filha. Corta-o ‘à la garçonne’, e verá como te vae bem…”

Coisa do diabo?

Mais provavelmente coisa da Primeira Guerra e da inserção das mulheres de forma massiva no trabalho fabril nos países centrais (da Europa e Estados Unidos)! A novidade aqui talvez não fosse o trabalho em si, pois um contingente enorme de mulheres pobres trabalhavam, mas o o trabalho na indústria pesada, em meio a maquinários perigosos e em espaços restritos. Os volumosos e longos cabelos que até a Belle Époque eram cuidadosamente presos e cultivados, tomando um tempo considerável da rotina feminina, e assim como as longas saias e mangas, restringiam a liberdade de movimento das mulheres. Uma vez que a Primeira Guerra trouxe essa mobilização “total” da população, inclusive feminina, e com ela as novas necessidades e exigências de um modo de vestir e se apresentar mais prático, menos trabalhoso, os cabelos curtos entraram em cena para ficar. A novidade, no entanto, naturalmente tinha seus críticos e detratores… especialmente entre os homens.

Ilustração do artigo “Cabellos à la garçonne”, autor desconhecido. “A Mascara”, ano VII, nr. 3. Hemeroteca do Museu Hipólito José da Costa.

“Toujours la même chanson…

A questão dos cabellos continúa a ser uma das grandes questões da actualidade.

O grupo conservador dos cabellos compridos, a quem o coque não se afigura a ignominia prehistorica que a maioria repudiou, diminue dia a dia. A cabeça á la garçonne é incontestavelmente a cabeça da moda. Há quem affirme que os cabellos compridos, em pouco tempo, passarão a ser tão lendarios para as mulheres como para os homens. A extrema commodidade que representa o cabello curto garante-lhe a longevidade das medidas radicaes. As longas cabelleiras que no caso delicado de Lady Godiva tanto serviço prestaram, já não teem mais razão de ser diante da desvalorização crescente […].

Onde vão parar, no emtanto, perguntam curiosamente os espiritos pesquizadores, todas estas madeixas sacrificadas…

Não é possível, não andarem mais na moda os penteados muito carregados, que sejam todas empregadas no exclusivo fabrico dos postiços. Famina, o grande magazine francez, esclarece-nos espirituosamente a este respeito. Antigamente e num antigamente bastante antigo, valha a verdade, o supremo chic, a elegancia insuperavel exigia um bracelete ou um annel feito do cabello proprio ou, o que era mais requintado ainda, do cabello do objecto amado.

Quando este objecto não tinha porém bastante riqueza capillar para dispôr de um cacho ou mécha sufficiente, eram bastantes alguns fios dentro de um medalhão de vidro que se trazia, a guiza de pendantif, dependurado ao pescoço.

Não se limitava porém só a estas deliciosas sentimentalidades de joalheria a indústria dos cabellos.

Executavam-se quadros inteiros de cabello, representando ás vezes uma paisagem, outras uma jovem camponia pensativa e outras ainda um lago lamartinesco rodeado de salgueiros. Para os salgueiros empregavam-se geralmente cabellos grisalhos, devido talvez á incipiente melancolia com que surgem. Estas mercadoras de outras éras, foram há muito abolidas, os cabellos cortados, porém, encontram a mais imprevista das applicações.

Desde que as mulheres não os querem mais na cabeça, os grandes pelliceiros de Londres tiveram a lembraça genial de empregal-os como fourrures[2].

Sim, minhas senhoras, o chic dos chics é ter uma estola ou mantelete feito do proprio cabello e enfeitar os seus vestidos de baile com franjas de cabello, devidamente tintas e preparadas.

Os cabellos brancos adquirem assim enorme cotação commercial afim de servirem de arminho e os bellos cabellos castanhos, deste lindo castanho dourado que os inglezes chamam de ambura, simulação soberbamente o fulvo Molonsky.

O Daily Mail, que foi um dos primeiros a assignalar essa moda originalissima, descreve com enlevo uma elegante assim ataviada:

‘Passeava hontem em Piccadilly umas das nossas mais formosas damas trazeado um casaco marron escuro todo bordado com cabello castanho e louro. Duas tranças cahiam-lhe na frente do corpete como pontas de gravata… e o conjunto era de irreprehensivel elegancia.’

Ahi está, em claros termos, a opinião valiosa do Daily Mail, accrescentando o articulista alguns commentarios acerca da extraordinaria economia representada pela diffusão de tal moda.

Para as desgraçadas torturadas pelo desejo de tosar o cabello e a tristeza de separar-se delle, usal-o como pelle ou guarnição de vestido seria verdadeiramente ideal.

– ‘Bonito o teu renard[3], Baby, de onde o mandou V. vir?

Renard?! É ‘bluff’, minha cara!… Tirei-o simplesmente dos despojos desta minha maluca cabeça aos quaes reuni os de minha prima Leticia, que tem o cabello egualzinho ao meu. Vendeu-m’o por 80$000… Acha caro?… – e assim fallando esse figurino vivo que é a Baby acomchegava aos hombros um magnifico renard de cabellos pretos. Imprevistos da época…

M.E.C.

Abaixo, alguns desenhos de pesquisa com base em fotografias, feitos a lápis e pincel com nanquim sobre papel, e coloridos digitalmente pela pesquisadora:

Referências:

A Mascara, ano VII, nr. 3. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, Porto Alegre.


[1] A Mascara, ano VII, nr. 3. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, Porto Alegre.

[2] Do francês, “pele”.

[3] Do francês, “raposa”, ou “pele de raposa”.

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