Cartões postais da esquina do Largo dos Medeiros mostrando a confeitaria Central. Arquivo desconhecido.

A confeitaria Central

Sem dúvida um dos prédios mais charmosos do antigo Largo dos Medeiros, a confeitaria Central era um dos grandes pontos de encontro da sociedade elegante da Porto Alegre do início do século XX. Vivia-se então nesses lugares o tempo dos encontros tipicamente masculinos para discussão de política, e as mulheres os frequentavam para os chás e lanches da tarde em companhia de família ou amigas. Em seu romance O Perdão, Andradina de Oliveira assim descreve essa presença feminina:

Na Confeitaria Central senhoras da moda, em toilettes de verão, chapéus vistosos, rescendentes de perfumarias caras, tomavam chá elegantemente. [1]

De fato, na primeira década do século em que escreve, a autora teria visto o prédio majestoso porém diminuto da confeitaria Central surgir na paisagem. Contemporânea à sede antiga da Prefeitura atual, esta confeitaria talvez tenha feito parte de uma leva de construções, promovida pela iniciativa privada, que começou a mudar a paisagem urbana nos primeiros anos do século XX. Ou seja, os antigos prédios coloniais portugueses que compunham grande parte do tecido urbano começavam a ser substituídos por edificações do que se convencionou chamar estilo eclético ou historicista, em que a pompa da decoração inspirada na arquitetura greco-romana, barroca, gótica, entre outras, conferia uma solenidade especial à edificação. Vinda da Europa, essa tendência foi típica da época não só em Porto Alegre, mas em inúmeras cidades brasileiras.

Cartões postais da esquina do Largo dos Medeiros mostrando a confeitaria Central. Arquivo desconhecido.
Cartões postais da esquina do Largo dos Medeiros mostrando a confeitaria Central. Arquivo desconhecido.
Cartões postais da esquina do Largo dos Medeiros mostrando a confeitaria Central.
Cartões postais da esquina do Largo dos Medeiros mostrando a confeitaria Central. Arquivo desconhecido.

 

Contudo, o cronista Achylles Porto Alegre recorda os tempos anteriores à construção do belo edifício, apontando que o lugar era originalmente ocupado por um armazém “baixo, acaçapado, de máo aspecto”:

A confeitaria Central[2]

“Na esquina da rua dos Andradas e da Ladeira [atual rua General Câmara ], está o elegante edificio, de construcção moderna da ‘Confeitaria Central’.

O prédio que ali existia era baixo, acaçapado, de máo aspecto. Parecia antes uma vendola da roça á beira da estrada quase sem transito em Belém Velho ou no morro Sant’Anna.

Quando eu a conheci não quer propriamente uma casa de negocio, mas um ponto de reunião de um ou outro amigo do dono da casa.

O armazem era occupado pelo velho Antonio José Coelho Junior, um bom homem muito considerado entre nós pelas suas virtudes.

Quando moço teve negocio, mas não foi feliz, por confiar demais na honradez dos outros. Foi uma victima da sua boa fé. Si não fosse o capitalista José Dias de Souza, que o deixou como seu testamenteiro, o Coelho Juniar [sic] não teria recebido da vintena mais de duzentos contos que, naquella época, era uma enorme fortuna.

Essa casa ahi era antes um escriptorio, um ponto de reunião de palestra, frequentado, então na sua maioria pelos conservadores.

Eram infalliveis ahi o Claudio José Monteiro, o Francisco Lemos Pinto, uma espécie de oraculo do commercio, o Manoel Candido de Campos, o Estacio José Monteiro e outras figuras de destaque.

Com a velhice e os achaques do Coelho Junior a roda dos amigos que apparecia por sua casa dispersou.

Ás vezes, para matar saudades do velho que arrastava a vida entre as arvores da sua quinta á praia de Bellas, lá ia dar com o costado um ou outro amigo daquelles que frequentavam a sua casa.

Para este ponto veiu então o Januario Neves com o seu armazem de especialidades, conservando o mesmo aspecto que o predio tinha de épocas remotas.

Por esse tempo existiam aqui alguns armazéns de especialidades – o Mendes Rocha, a ‘Economia Domestica’ de Cunha Trindade, o do Appolinario de Medeiros, o do Boaventura Gonçaves & Cia e mais um outro.

O armazem do Januario tinha então uma enorme freguezia. A lida da casa começava cedo ia até um pedaço da noite. Parecia antes um armazém de alfandega dando ainda a despachos.

Um dia, pela manhã, uma manhã de inverno, fria, um facto anormal se passava no armazem do Januario.

Em cima da platibanda, quem passasse por alli, viria enfileiradas garrafas de vinhos finos, licores, vidros de conserva, queijo do Reino, caixas de charutos e outras coisas que pareciam estar arejando em cima do telhado.

O caso extranho estava explicado: – dous gatunos penetraram no interior do armazem pelo tecto. Senhores da casa, trataram de aquecer o corpo, e começaram a beber marasquino e outras bebidas finas.

Dentro de um tempo, os dous ‘gambás’ dormiam a somno solto em cima da casa. E ahi, nesse estado deploravel, a policia os fez descer, no meio dos assobios dos garotos, que assistiram a descida das alturas.

Pouco depois o Januario Neves adoeceu e acabou com o negocio.

E foi dessa casa baixa e de máo aspecto, com ares de taverna de roça que surgiu, mais tarde o bello edificio da ‘Confeitaria Central’, onde se reune o nosso mundo elegante para devorar os finos doces que enchem as vitrines como uma tentação.”

Revista "Kodak", AHMMV, 03/11/1917, p. 12.
A confeitaria Central ao fundo de uma romaria de autoridades municipais. Revista “Kodak”, 03/11/1917, p. 12. Hemeroteca do AHMMV.

O bello edificio a que se refere Porto Alegre é fruto da influência germânica na arquitetura eclética de Porto Alegre, que foi grande devido à predominante presença de engenheiros e arquitetos de de origem alemã no campo da construção civil. A confeitaria Central foi obra do escritório de Rudolpho Ahrons, engenheiro então em destaque nas obras de renovação arquitetônica da cidade. Conforme Arnoldo Walter Doberstein,

Seu [de Rudolpho Ahrons] escritório de engenharia passou por duas fases. De 1897 a 1908 as atividades foram menos intensas. Os projetos eram executados em conjunto pelos arquitetos, inclusive com participação mais direta de Ahrons. São desta fase a antiga Caixa Econômica Federal, na praça Senador Florêncio, o Palacete Chaves, a Livraria Americana e Confeitaria Central, localizados na esquina da rua da Praia com a rua da Ladeira. [3]

Foto 4242f da Fototeca Sioma Breitman do Museu de Porto Alegre. A confeitaria Central e o Largo dos Medeiros na enchente de 1941.
Foto 4242f da Fototeca Sioma Breitman do Museu de Porto Alegre. A confeitaria Central e o Largo dos Medeiros na enchente de 1941.

Hoje o antigo edifício da confeitaria Central foi há muito substituído por uma construção mais recente, assim como as edificações marcantes de três das quatro esquinas do Largo dos Medeiros.

Foto de satélite do Largos dos Medeiros
Foto de satélite do Largos dos Medeiros indicando em amarelo o largo em si, e em vermelho a localização da confeitaria Central. Edição da pesquisadora.

Na história em quadrinhos Beco do Rosário, a confeitaria Central é cenário de algumas cenas:

Confeitaria Central na HQ_01
A confeitaria Central na história em quadrinhos “Beco do Rosário”.
A confeitaria Central na história em quadrinhos.
Parte da Confeitaria Central (à direita) na história em quadrinhos “Beco do Rosário”.
A confeitaria Central na história em quadrinhos.
A confeitaria Central na história em quadrinhos “Beco do Rosário” num desenho do Largo dos Medeiros.
Estudos do Largo dos Medeiros e da confeitaria Central feitos pela pesquisadora em 20015. Lápis e bico de pena sobre papell (sketchbook).
Estudos do Largo dos Medeiros e da confeitaria Central feitos pela pesquisadora em 20015. Lápis e bico de pena sobre papell (sketchbook).

 

[1] OLIVEIRA, Andradina de. O Perdão. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2010 [1910], p. 279.

[2] PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1940. P. 63-64. A grafia original foi mantida.

[3] DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. Estatuários, catolicismo e gauchismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 51.

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