Alcides Cruz

“[…] eu não me molesto com os epítetos mestiço, mulato ou negro”: Trajetória e escritas de si de um professor negro: Dr. Alcides de Freitas da Cruz[1] (1867-1916)

Anotações da palestra do Prof. Paulo Roberto Moreira (UNISINOS), em 16/11/2016.

Nascido em 14 de maio de 1867, em Porto Alegre, Alcides Cruz foi jurisconsulto, professor e um dos fundadores da Faculdade de Direito, que depois passou à UFRGS. Também era filiado ao PRR (Partido Republicano Riograndense), que conduziu o Estado durante toda a Primeira República. Apesar de sua importância intelectual, sujeitos como Alcides Cruz e Aurélio Viríssimo de Bittencourt permanecem poucos conhecidos, invisibilizados, e tem seu pertencimento à identidade negra apagado. Aurélio, por sua vez, foi chefe de gabinete de ninguém menos que Júlio de Castilhos, presidente do Estado por duas vezes e autor da Constituição de 1891, e seus filhos fundaram o jornal O Exemplo. Essas trajetórias de pessoas negras não diretamente atingidas pela escravidão têm importância fundamental para descobrir como lideranças como Alcides Cruz surgiram, sendo também encontrados nas associações negras religiosas, como o clube 13 de Maio, em Santa Maria, e a Irmandade do Rosário em Porto Alegre.

Alcides Cruz - IHGRS
Fonte: IHGRS

Na foto que se tem de Alcides Cruz, ele parece como os dândis do século XIX, na mesma linha intelectual e urbana de Oscar Wilde. De fato, Alcides Cruz era um intelectual  formado em Direito em São Paulo em 1897, lecionando na mesma faculdade de Porto Alegre,  e deputado em cinco legislaturas pelo PRR, partido em que havia também outros afiliados negros. Se, durante a monarquia, já havia forte presença negra no Partido Liberal, com o regime republicano abrem-se mais espaços para o funcionalismo público, em que muitos membros da comunidade negra encontram oportunidades de ascensão social. Nesse sentido, Alcides foi irmão das Dores[2], uma comunidade religiosa de elite, e, assim, é “branqueado”, enquanto acessando espaços predominantemente brancos. Contudo, seu pertencimento negro é percebido na sua trajetória familiar: Alcides Cruz foi casado com Severina Pereira (Santos) uma mulher negra, tendo com ela a filha Zoé Cruz Barcelos. O irmão, Leopoldo de Freitas, é citado como advogado e o pai, Manoel Pinto Lacerda da Cruz, é pernambucano e falece nos primeiros anos de vida de Alcides, que se identifica ao pertencimento negro de sua mãe, Adelaide Leopoldina de Freitas, não referindo o pertencimento de cor do pai. A mãe de Adelaide é Estefania Maria da Assunção, filha de “pardos forros”, ou seja, em relação direta com a escravidão. O seu sobrenome católico é comum na comunidade negra, forjando uma identidade livre brasileira.

Na Porto Alegre da Primeira República, é possível ter uma idéia de como era o racismo partir dos escritos de Alcides Cruz. Sabe-se que, em torno em torno de 1916, o epíteto de mulato era usado como injúria. O racismo permeava ainda mais as relações sociais, e poucos corajosos assumiam sua identidade negra abertamente. No caso de Alcides Cruz, o pertencimento racial está invisibilizado, porém aparece no momento em que, assim como tantos outros membros da comunidade negra, Alcides Cruz também é vítima de injúrias racistas. Já na época, as respostas dessa comunidade mostram como ao menos uma parte dela estava atenta e politizada para defender-se de injúrias e preconceitos.

Nesse contexto, houve momentos em que Alcides Cruz se recorreu à imprensa para se manifestar contra injúrias raciais, em que se perguntava como compreender o racismo num país tão miscigenado, como numa querela de 1903[3], que parece antecipar o questionamento de Gilberto Freyre[4] em 30 anos. Aí, a sua “escrita de si” chega até os nossos dias, fazendo também um discurso político sobre a sociedade em que ele está. N’A Federação, em suas edições de 11/1/1903 e 12/1/1903, Artur Pinto da Rocha procura insultar Alcides chamando-o de “mestiço, mulato ou negro”, “corvo”, o que pode ser entendido como ofensa se visto na retórica da diáspora, Alcides mostra e reafirma sua pertença à comunidade negra com eloquência elegância. Cabe salientar que, no pós-abolição, “negro” era uma palavra injuriosa pois ainda associada ao trabalho escravo, mostrando o caráter racializado da escravidão no Brasil. Muitos negros diferenciam-se, portanto, afirmando-se como “pardos”, e, em seu atestado de óbito, Alcides é categorizado como pardo.

N’A Federação de 9/7/1913, ele remete sua identidade negra à mãe e à avó, mostrando o papel da presença feminina para afirmar a pertença negra. O mesmo se dá com Aurélio Viríssimo de Bittencourt, cuja mãe é negra.

Após sua morte, sua biblioteca foi doada à Faculdade de Direito, e pelos seus livros pode-se traçar sua trajetória intelectual: Alcides legou 1837 livros à biblioteca, o que para a época era enorme, dada a dificuldade de circulação de livros. Tratava-se de uma biblioteca de intelectual de excelência, com muita literatura brasileira e internacional, gramáticas e dicionários, livros em francês, inglês, italiano e alemão, diversidade e riqueza intelectual que pode colocar Alcides Cruz como um intérprete do Brasil trazendo um viés racial. Também havia muitos livros de Direito em italiano por ser a escola penal italiana na época muito evidenciada pela antropologia criminal de Lombroso e Garofalo. Sobre raça e evolucionismo, Alcides tinha volumes de Delage, Goldsmith Nina Rodrigues, este último um pardo brasileiro formado em medicina que discute racismo de forma muito influenciada pelas teorias racistas. Assim, vê-se que Alcides Cruz inteirou-se da discussão científica sobre raça da época, ou seja, sua pertença à identidade negra era informada sobre teorias da época. Além disso, dominava o alemão e se correspondia com intelectuais alemães, traduziu um livro do inglês, escreveu crítica literária, como o Quincas Borba, de Machado de Assis, e na Revista do Brasil (SP), no final do século XIX.

Referências:

[1]Informações também disponíveis em https://www.ihgrgs.org.br/fragmentos/Biblioteca%20-%20Homenagem%20Alcides%20Cruz.pdf

[2]Igreja das Dores, na rua Duque de Caxias.

[3]Sobre esse episódio e o de 1913, ver https://www.ihgrgs.org.br/ebooks/Ebook%20-%20ALCIDES%20CRUZ%20-%20Mestico,%20mulato%20ou%20negro.pdf

[4]Em seu livro Casa Grande e Senzala, de 1933.

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